segunda-feira, 30 de abril de 2012

Rispidez


Perguntei a meu pai com voz triste:
- Como pode o silêncio ser áspero
se ele é sempre somente silêncio?

O meu pai respondeu sem palavras:
- Como pode ser feita a pergunta,
se é já feita contendo a resposta?

Tive medo de ser insolente:
- Confiança não é justamente
confirmar coisas que já se sabe?

E em resposta à pergunta não feita:
- Confiança é saber que a colheita
é também filha da tempestade.

Porca festa


Se você fosse um deus onipotente
e descobrisse uma camada semovente
de derrisão na criação arquitetada:
a ação protagonista degradada,
e outros seres vislumbrando a inexistência
por quase sempre enorme displicência
na gestão do que, por vezes, se autogesta;
com tantos presentes, tão porca festa;
tão complexo mundo para um pensar tão raso...
...o que você catastrofaria nesse caso?

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Matemática do sentido


Você pode beber meio copo de água,
comer meia fatia de bolo,
brindar com uma meia-cerveja.
Você pode ter um meio-amigo,
um meio-irmão, dizer uma meia-verdade,
ter mais ou menos confiança,
andar mais ou menos que a metade
ou o terço ou dois terços
da estrada que escolheu.
Você pode ter nenhuma,
pouca,
muita
ou gigantesca
atração ou repulsão, concordância ou discordância, aceitação ou recusa.
Você pode numerar amigos,
numerar façanhas,
numerar vantagens,
colocar na balança ditos e feitos,
fazer a média entre erros e acertos,
fazer o balanço entre avanços e recuos,
calcular o saldo final entre lisuras e vilezas.
Você pode fixar um valor até para seus valores,
criar meios para aumentar o valor dos valores,
criar meios-valores para aumentar os valores,
criar valores para os meios de aumentar os valores.
Mas quando você toca uma vida, meu querido,
você não toca meia vida,
não toca um quarto de vida,
nem três oitavos de vida,
nem dois vinte e dois avos de vida.
Quando você toca uma vida
é ponto final na oração.

Basta uma pomba branca
para dizer: nem toda pomba é cinza.
Basta um sonho vivido para dizer:
nem todo sonho é quimera.
(A intangibilidade do texto artístico
- barreira à fruição total sem todo -
também é própria do texto-vida,
primor de escrita em linhas tortas.)
Não importa a extensão,
o tempo total do percurso,
a feição da meta no horizonte -
quando você cruza um caminho,
vira parte do caminho.

Basta que uma única vez
perdida na história do corpo
um coração tenha batido
mais forte por sua causa
para que toda a vida vivida
tenha cumprido a função de meio
de alcançar um sentido só sentido
por inteiro.

Sinceridade


A primeira das coisas
que lhe vêm à cabeça
não pode ser aquilo
que você pensa,
porque as coisas que você pensa
não podem ser as primeiras
que lhe vêm à cabeça.

Sinceridade não pode ser desonestidade nem doença.
Não é para comprar desavença,
não é para compensar a falta de paciência:
sinceridade é verdade.

Verdade tem consistência.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Níveis


As coisas que ela faz para ser notada, vista
não cabem numa lista, e valem como item.

As coisas que ela faz para que todos queiram vê-la
não fazem dela estrela, que estrelas não existem.

As coisas que ela faz sem ter ninguém por perto
não são de "errado ou certo", não cabe avaliar.

As coisas que ela faz no plano do não-visto
estão muito além disto, em outro patamar.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Ou


Ou você muda, e assume todo trabalho que faz como uma entrega confiante àquilo em que acredita,
Ou você faz como todo mundo, e enche a boca do vento das regalias que acredita ter.

Ou você muda, e atribui dignidade a todo ser humano que lhe rodeia,
Ou você faz como todo mundo, e gaba-se de mandar e humilhar, e ter serventes.

Ou você muda, e compreende todo acontecimento como um pedaço do infinito,
Ou você faz como todo mundo, e direciona o olhar à sua fatia do bolo.

Ou você muda, e deixa seu quarto todo inundado de sol,
Ou você faz como todo mundo, e contrata seguranças armados.

Ou você muda, e dá todo coração à verdade,
Ou você faz como todo mundo, e mente que não tem coração.

Ou você muda algo que reflete no todo,
Ou faz como todo mundo: monólogo em seu quadrado.

Ou você muda seu mundo, ou você só todomunda.
E todomundar é barra, amigo.

Basta olhar à sua volta.

domingo, 8 de abril de 2012

Nachos


consciência comprante
desistência constante
persistência pensante
mercadurante

de repente o rompante
desviante serpente
também posso ser gente
mercadoente

de repente a fissura
quando vejo infinitos
preenchimento e procura
mercadiante

consciência crocante
entre os dentes aflitos
bruto impulso tritura
mercadoritos

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Perguntas sobre o ciúme


o ciúme guia o prudente
ou o prudente é que guia seu ciúme?

o ciúme é desconfiança
ou certeza de que não se deve confiar?

o ciúme é o tempero do amor
ou o destempero do amor-próprio?

o ciúme é sinal de bem querer
ou não querer um mau sinal?

o ciúme é a escolha de uma suspeita
ou a suspeita por uma escolha?

o ciúme é a verdade que eu persigo
ou a insanidade que eu prossigo?

o ciúme vê até nas entrelinhas
ou cega-se até nas evidências?

o ciúme cerca, protege e domina,
ou seca, persegue e elimina?

o ciúme, pouco, cura, muito, mata,
ou, mesmo pouco, dura e se dilata?

o ciúme é sentimento necessário realmente
ou é necessariamente real só pra quem sente?

o ciúme é o descuido de um cuidado apreensivo com o outro
ou o cuidado apreensivo com o descuido do outro?

o ciúme adianta de alguma coisa?
e adianta de alguma coisa dizer isso
para quem tem ciúme?