quinta-feira, 15 de abril de 2010

Heroísmo de Ultraman

Contem comigo na luta contra
a ignorância e o preconceito,
a desfaçatez e a soberba dos abastados,
a injustiça social e a miséria da mente.
Com todas as minhas forças
e minhas armas especiais
combaterei esses horrores
até que a cidade em que vivo
possa dormir tranquila, e não
neuroticamente vigilante.

Mas não estranhem se em meio
à luta esvaírem-se as forças
e o chacra eletrônico da minha barriga
indicar necessidade de recarga,
busca inadiável do Sol,
e eu tiver de voar para longe do campo de batalha,
para além das nuvens de chuva ácida,
dos satélites e do lixo orbital.
É que até o defensor da Terra
tem seus momentos de guarda baixa,
de necessidade premente de pausa,
de mar, de ar, de energia solar,
de sombra e água fresca, de coffee break,
de deixar que os terráqueos se virem um pouco
e saibam que não é mole, não, macacada!
Ô, se não é!

Doce lar

Esta é a sua casa,
a casa onde você viverá por muito tempo.
Decore estes limites,
acostume-se a querer fundir
seu conteúdo interior
ao conteúdo do espaço ao seu redor.

Esta é a sua casa
e estes são os ruídos da rua.
Assimile-os à sua tranquilidade,
e, se possível, jogue com eles,
invente rostos e histórias
para seus companheiros de ar.

Esta é a sua casa,
o paradeiro de seus pés latejantes
das caminhadas diuturnas do trabalho.
Deite-se em cada um de seus cantos,
descubra fins para o frio do chão,
o morno do tapete, o cálido da cama.

Esta é a sua casa,
não a macule com amigos falsos.
Traga sua mãe, seus irmãos de carne,
seus irmãos de fé, seus camaradas.
Coloque sua geladeira à disposição.
Coloque sua disposição no fogão,
ceda o sofá, os vinhos, a sobra do escasso tempo.

Esta é a sua casa,
esta é a sua cara,
o seu sorriso nas cores das paredes,
o seu sagrado na disposição dos móveis,
o seu contínuo na utilização dos cômodos,
o seu coração na integração com os sonhos.

Esta é a sua casa,
prepare-se para amá-la com a paixão dos dândis.
Prepare-se para estabelecer acordos com ela,
para implorar que ela nunca o abandone,
para perdê-la e ganhá-la quantas vezes o destino determinar.

Este é o pedaço de mundo que você pode chamar de seu.

A dois

Eu sei que escolho sempre a marca mais barata
e que você não come os sanduíches inteiros.

Eu sei que tenho paúra de faxina nas gavetas
e que você ocupa o armário com uma coleção de Barbies.

Eu sei que expresso insatisfação com um silêncio indecifrável
e que você não sorri quando discorda da cor da camisa.

Eu sei que não ando bem-humorado ultimamente
e que você fica esquisita quando não tem preocupações.

Eu sei que uso palavras proibidas pelo contexto
e que você deixa no ar minhas próximas descobertas.

Eu sei que você quer que eu seja rato do convênio
e que você sabe que ainda tenho medo de injeção.

Eu sei que é difícil conviver com alguém tão pouco ambicioso
e que você me inclui em seus projetos a longuíssimo prazo.

Eu sei que estou fora de foco, mais do que fora de forma,
e que você lida muito bem com exigências alheias.

Eu sei de coisas sobre mim que ninguém sabe,
e de coisas sobre você que eu preferia ignorar.

Eu sei que você me quer para viver o que formos capazes,
e que eu quero você para sermos capazes de viver.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Triunfo

Venceu a dor
ao regorgitar as passadas em falso
e polinizar guinadas.

Venceu a sociedade
ao apedrejar expectativas parasitas
com os cacos do último brio.

Venceu a vida
ao consolidar vã permanência
zombando das perfídias do acaso.

Venceu a morte
ao coligir fragmentos de um puzzle
que alguém anseiará terminar.

Só não venceu a arte.
Na arte, o parâmetro da vitória é indecidível
porque a batalha é contra os deuses de dentro.