quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

As coisas menores

Fizemos um show no Largo do Belenzinho
para um público típico de quermesse.
Cantei algumas, toquei outras, amigos foram,
família foi, e tal. Íamos embora, chega a garotinha.
"Para você". Me deu uma balinha de hortelã.
Pura ternura.

Sonhei que estava pajeando cachorrinhos
recém-nascidos, mas menores que o habitual.
Eu colocava o dedo indicador para lamberem,
e eles testavam dentição dando mordidinhas.
Vontade de pegar no colo, mas ainda eram muito minis.
Cócegas doces.

De vez em quando, passando pelas ruas
daqui de perto do meu trabalho na escola,
uma menina - sempre ela - me vê de longe, e vem,
e pula no meu pescoço, sorrindo. Isso desde a terceira série.
Às vezes dói um pouco, que minha coluna
já não está tão resistente aos trinta e tantos,
mas sempre deixo.

Quando sinto falta de você, não exatamente
desejo grandes trepadas, toda a atenção do mundo,
condescendência, cumplicidade, ou amparo.
Percebo, no lugar disso, que ter você ao meu lado
não tem gosto de balinha de hortelã,
nem de mordidinha de cachorro, nem de pulo no pescoço.
E deveria.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Nobreza

Digo-lhes baixo, meus amigos: sou um rei.
Eu sou um camuflado imperador,
vagueando em segredo para ouvir
o "bom senso" dos que falam sem parar
na berlinda de bares abarrotados.

Toco as mãos dos que imploram ofertas,
finjo medo dos que furtam-me espécies,
e quando a polícia vem, rapidamente
baixo a guarda, o espírito e a cabeça
e não reajo à batida - embora queira -
em respeito aos que suam taciturnos.

Vasculho cada sarjeta, cada minúsculo
esconderijo dos detritos dos plebeus.
Frequento cada toca, cada cubículo,
não recuso convites de fantasmas.

E à noite, sem carruagem, coxia,
sou recebido pelo tapete vermelho
do respeitoso silêncio, e me arremesso
ao trono de espuma comprado a prazo,
de onde posso comandar tudo o que vi.

Milhões de páginas, milhares de estações,
centenas de canais e de programas
que no mínimo abrangem os sete mares
- e, portanto, também toda a cidade -,
representam universo a meu dispor.

Meu mordomo eletrônico oferece
cardápio inigualável, mas desejo
sempre um mesmo show: o que apresenta
justamente o nomadismo de minha vida
nos becos intangíveis e a insistente
sensação de que ainda não reinei.

Mas quem diria? Um rei que tem
o mundo, acreditem, outra coisa
procura distinta do domínio
daquilo que tão fácil manipula!

É verdade, amigos. Não procuro
a primavera da História,
o bálsamo dos justos,
a compreensão de uma verdade fugidia,
as regalias e os manjares,
ferraris, recepções, insígnias...
Não procuro a salvação da alma
nem do corpo, nem da lavoura arcaica...
Não procuro um país meu, um meu lugar...
Não procuro os montes, os vales, os ares...

Procuro outra Romy Schneider.

A fonte inesgotável

I

O sangue, a bílis, a linfa, o suor,
a saliva e a lágrima do seu corpo
poros da terra absorveram como água.

Parte dessa água nutriu raiz de planta,
floriu, frutificou nos ramos,
voltou ao corpo dos bichos na fome.

Parte dessa água fez-se clima,
lubrificando a pele das criaturas
que a natura criou co'aval de Deus.

Parte dessa água foi aos céus de novo
em nuvens que velaram das alturas
por montanhas, vulcões, campos, aldeias.

E do alto a chuva redistribuiu
a água do ser que um dia foste
por terras tantas que jamais soubeste.

II

Mas parte dessa água absorvida
secou na terra, se prendeu aos poros,
parou no tempo e se tornou reserva.

Essa parte de água que tu foste
não carreou vida, não voltou da morte,
não evaporou para além, como uma alma,

não circulou pelo mundo evaporada,
não se refez no ciclo hidrográfico,
não cogitou de voltar à ativa,

simplesmente optou por integrar-se
à química do imóvel, do estático,
recolhendo-se em silêncio de elemento.

Essa parte da água que tu foste,
e só essa, esquecida e quase nula,
é que pode ser chamada doação.

Muito cacique

Dito em bom tupiniquim:
só cacique tem cacife
de cuidar do seu jardim.

Dito para seu governo:
é melhor, cego, ver nada,
que mancomunar co'o demo.

Em vez de mandar, ser demandado.
Em vez de ordenar, ser ordenhado.
Em vez de lutar, ser enlutado.

E em vez de ter vez,
enviesado.

De vez em quando

Se os homens de bem cometessem maldades
de vez em quando
Se gurus impolutos ousassem pecados
de vez em quando
Se cucas pensantes pirassem o coco
de vez em quando
Se ínclitos cidadãos burlassem as regras
de vez em quando
Se esposas e esposos quebrassem seus votos
de vez em quando
Se todos os seres soltassem
seus monstros do peito
de vez em quando

e só de vez em quando

A vida em sociedade seria perfeita
para sempre

Pinky e Cérebro

O homem inteligente
terá o domínio do mundo,
por certo, um dia, perdendo
o domínio de si mesmo.

O homem sábio não perde
o domínio de si mesmo,
por certo, um dia, podendo
chegar ao domínio do mundo.

Dois oceanos

Quando é bomba de Truman,
o dedo indica o Pacífico.

Quando é gesto de Gandhi,
a mão pacifica o Índico.

Fixação

O que tu chamas de hipnose,
e eu, de compenetração,
é mais uma questão de dose
que de nome.

Na pressa, o olhar rui por dentro,
comprometendo a apreciação,
condicionando o encantamento,
tirando a graça da fome.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Sol do peito

Mantive as janelas fechadas no frio.
Cuidei de calafetar cada fresta.
Só caminhava com pantufas substanciadas,
e cobria as cobertas com cobertas,
como se acampasse em cima da cama.

Quando esse tempo passou, a morte
deixou de bafejar ameaças, e corri
com alegria em direção às portas
da alma na qual meu corpo se refugiara
por receio do sorriso no rosto do sol.

O sol tinha deixado um recado
na caixa antiga de correspondência,
um aerograma que assim dizia:
"Bati na porta da sua alma,
depois, bati em retirada."

"Venha me buscar, que a alma
de luz por mim parasitada
morreu, desabrigando um corpo inerte,
cuja única satisfação erótica
era poder fingir ter as rédeas".

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Baleia interior

Eu olho para uma planície intocada
que se estende até o limite do turvo,
e milhares tons de verde que se alternam
nos túneis de grama e flores e densidade
tornam-se inapagáveis nos favos da mente.

É por isso que eu posso cerrar os olhos
e contar ainda com o acolhimento
dessa extensão do instinto, muito embora
o espaço do sentir, mais seletivo,
toque o essencial, e perca o todo.

Da mesma forma, quando tua exuberância
mostra-se ampla de sequer caber em ti,
e os sentidos pulam para fora, enlouquecidos,
tentando dar conta de cobrir essa amplidão
mesmo reconhecendo-a de impossível remate,

quando isso acontece, cerro estes olhos e,
enquanto imagino que és tudo em minha volta,
envio um canto a ser captado a quilômetros
de distância de teu corpo, de teu vulto, de tua presença,
lá onde a planície que és verdeja ainda.