segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Poesia e carência


É fácil ver meus olhos marejando.
É fácil minha pele arrepiar.
É fácil me deixar sem respirar,
Deixar meus sentimentos sem comando.

É fácil me ferir de vez em quando,
É fácil me atingir sem atirar,
Mas é difícil estar no meu lugar,
Passar pela emoção que estou passando.

Por isso, valorizo a compreensão,
A amizade, o amparo e a paciência
De quem não julga o pranto no meu rosto.

Não choro por fraqueza ou por desgosto:
Sofre de poesia a consciência,
Sofre de carência o coração.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Teatrinho


Meu e teu teatro,
De medos, de sombras.
No palco,
Só formas que trombam.
Primeiro e último ato,
Atores em desacordo.
Até se consegue aplauso,
Mas morno.

Meu e teu teatro,
De faltas, de poses,
Sem falas,
Só bocas e pontos.
Tudo soa decorado
Como um berro sem assomo
No ânimo frouxo e barato
Do sono.

Meu e teu teatro,
Sem solo e sem fogo.
Lançamento de dois dados
No acaso das regras do jogo.
Meu e teu teatro,
Agora e de novo
O velho papel que nos cabe:

De bobos.

domingo, 16 de outubro de 2016

Libação


A coragem que eu tinha
De largar tudo pra trás
E assumir o monastério do nada
Numa montanha desconhecida
Era capaz de encher um copo.

Enquanto professor
Nunca servi desse vinho.

Já enquanto cidadão,
Sonhei embebedar de poesia
Almas em crescimento,
Para que invadissem meu lar
Sem remorso ou relutância,
Saqueassem minha adega,
E partissem de minha vista para o definitivo.

Eu comemoraria cada estilhaço dos tóneis
Como ressurreição.

domingo, 11 de setembro de 2016

Pilar

Dispenso que me reconheçam
Naquilo em que me reconheço.
Dispenso fazer de posições troféus
De uma gincana de vaidades.
Dispenso ganhos de preocupação,
Dispenso ter mais do que controlo.
Pouco me importam aplausos inflamados
De quem não me viu.
Consumo pouco, vivo muito, curto o breve,
Estou onde estou por inteiro
E o tempo sabe disso.

A propósito: dispenso o controle do tempo.
O que posso reter em minhas mãos
Já me escapou.
O que posso perder comigo no dia de hoje
Levo com toda a gratidão.
Não tenho do que reclamar.
Se o destino queria me presentear,
Já o fez sem saber,
E não com sensações impermanentes de vitória,
Nem com talentos impermeáveis,
Nem com acessos ao que não solicitei.

Não importa quantos convenci com palavras,
Quantos demovi de enrascadas,
Quantos recuperei para a ética.
Não importa quanto acumulei em elogios,
Quanto lucrei com sacadas,
Quanto vingaram minhas ideias,
Livres de mim, afinal.
Não importam quantias, adereços, bravatas,
Elogios, silenciamentos, submissões,
Conquistas por presença intimidadora,
Sinais de aprovação e acatamento.

Nada disso realmente importa
Quando percebo que abres
Esse sorriso enorme ao me ver.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Delirismo



Não sei se você sabe.

Liberdade era o que pedia o bebê no colo da garota.
Liberdade era o que pedia o cão na coleira tensa.
Liberdade era o que pedia o panfleto mergulhado no bueiro.
Liberdade era o que pedia o estudante machucado pela bomba.

O futuro de alguma forma aconteceu
enquanto você lamentava que as canções já não prestam,
a inteligência não orna, o brilhantismo não vale,
enquanto você dizia que tudo-tudo já foi dito,
que é preciso encontrar um sentido
digno de investir seu tempo de vida,
tempo, aliás, adquirido com as sobras
da renda de quem, o tempo todo,
sambou no topo da pirâmide.

Tinha um coitado drenando intestinos miseráveis
na porta de um restaurante de madrugada
enquanto você demonstrava a realidade (comprovada) do mundo
para uma plateia de protegidos.
Tinha um monte de lixo com crianças abandonadas
disputando o último açúcar do vidrinho da geleia
enquanto você pregava com eloquência libertária
seu direito (especificamente o seu) de fazer o que der na telha.

Não sei se você sabe.

A vida não tem cardápio para apetite blasé.
Seu tédio é pago com a escravidão de alguém.
Nalgum outro centro de universo
distinto do que conspira a seu favor,
cadáveres adiados pedem todo dia
literatura, mesmo morta;
poesia, mesmo insatisfatória;
sanidade, mesmo questionável;
amparo, mesmo envergonhado:
para o futuro do bebê,
para o pescoço do cachorro,
para a voz perdida no espaço,
para as feridas de transgressores que dançaram
como a empregada na piscina da patroa.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Enfrentamento


Se você optou por caminhos perigosos e violentos,
Desrespeitou convenções, quebrou as grades da jaula,
Expôs a dor de querer mais nas janelas da alma,
Avançou contra o óbvio e sublevou seu próprio tempo;

Se você escolheu honradez e renegou honrarias,
Quis alegrias de outrem mais que as vaidades de si mesmo,
Leu a súplica dos covardes na falsidade de seu pretexto,
Ousou estampar a verdade na testa por lema de vida;

Você, como eu, teve de pisar armadilhas
Que morderam seus pés de Mercúrio e suas asas de cera,
E que serviram muitas vezes como aviso de fronteira
Desse mundo montado por gente mesquinha.

Você, como eu, perdeu a conta das pedradas,
Mas nunca se perdeu no entendimento das senhas.
E se o rio da maioria quer arrancar nossas cabeças,
Cremos que ainda é possível pairar sobre as águas.

Vamos pelo contrafluxo, cavar a secura dos poços.
Vamos semear o bom, que é também o indigesto.
Vamos aceitar a glória de sermos o resto do resto.
Vamos esperar por Cristo no Vale dos Leprosos.