sábado, 7 de outubro de 2017

Magister


Todo pedacinho de cristal,

por mais diminuto e escondido,

por mais rachado e ordinário

no sumidouro da trilha,



Se você descobrir o jeito certo de olhar,

a dose precisa de sol ou de luar,

o ângulo exato do trato de fitar,

ele brilha.



Todo aluno meu

é um pedacinho de cristal

de maravilha.

Cheia


Olho a lua cheia

da minha janela.



Olho a minha janela

cheia de lua.



Ou é a lua quem olha esta janela

cheia de mim?



Acho que os olhos meus estão na cheia

por causa da lua da janela.



Acho que olho minha lua

da janela cheia.



Acho que olho, na lua cheia,

uma janela de mim.

O brilho que perdura


As estrelas se apagam,

Mas seu brilho perdura,

E nós nos desintegramos

Antes de poder atingi-las.



Para conhecer as estrelas

É preciso observá-las

No movimento e na luz

Que garatujam no firmamento.



É preciso ganhar as técnicas

E instruções do bem observar.

Depois, entregar-se à solidão

E à diligência, silentes.



E então, precisamos distinguir

Os brilhos das estrelas dos efêmeros,

Que cruzam o alcance das lentes

Mas não grudam no céu.



Depois ainda, interpretar luzes, saber

Quais vozes na diferença de cores

Indicam sangue e DNA

De astros genuínos.



E ainda mais, precisamos

Perseverar na vigilância

Para confirmar o estatuto estelar

Dessas pérolas incandescentes.



E mesmo com todo esse esforço

E disciplina, sempre nos foge

Algo do caráter das estrelas

Pelas frestas de nosso olhar.



Até que se apaguem, portanto,

As estrelas que estudamos,

Devemos garantir que olhares novos

Descrevam com mais capricho suas luzes.



O sentido desta vida, devemo-lo

À causa dessas estrelas,

Paradas na nossa percepção

E velozes nas transformações de seus sinais.



Por tudo isso, sustentarei, ao caminhar

Com pés na areia e olhos nas nuvens

Que as vozes de Dante, Shakespeare, Cervantes,

Camões, Pessoa, Mallarmé,



Os sons de Mozart, de Bach,

As formas e sombras de Goya e Rembrandt

São trilha e aquarela desse cosmos

Que ainda brilhará quando eu me for.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Noite nas imediações

Algumas coisas precisam ser compradas, mas isso talvez seja também outro pretexto para movimentar o corpo pelas ruas próximas, à noite. É sempre interessante notar como são ocupadas - em alguns casos, diria preenchidas - por figuras soturnas, completamente distintas dos grupos alegres e cantantes que torram tempo em mesas de bares, calçadas na frente da faculdade, pontos de ônibus. 
Na esquina do Posto Ipiranga, um homem jovem, magro, de barba, roupas rotas, aparentemente sujo, faz gestos amplos com os braços, mas não fala muito. Ele sorri, e parece querer dizer algo aos transeuntes, que se afastam um pouco no caminho, ou simplesmente desprezam o chamamento.
Eu passo me afastando, o que é alguma qualidade de desprezo, pela distância, mas também de consideração, pelo medo. De alguma forma, aquele vulto tem um poder sobre mim, que desconfio ser o de incitar a curiosidade sobre o que se passa em sua cabeça naquele momento. Mas eu tenho medo de ser descoberto nesse interesse e ter de lidar com a atenção que o homem requer, e tenho também a excelente desculpa de que o mercado vai fechar e preciso comprar comida saudável para os próximos dias. 
São dois quarteirões e mais quarenta minutos dentro do Pão de Açúcar deliciando-me no prazer de escolha; reconheço que é ilusório em tempos de propaganda massiva, mas gosto da ficção de que posso pegar e pagar o que me interessa. De sacola cheia, é difícil retornar com as calçadas abarrotadas de jovens muito jovens, com jeito muito adolescente e parecendo absortos em algum tipo de vaidade particular de tomar todos os espaços pedestres para si, obrigando-me a andar nas ruas, quase por entre os carros. Esses meninos e meninas são de fato os donos do pedaço e do quarteirão naquele momento, mesmo sem talvez serem de direito. No caso deles, ninguém reclamará de eventual esbarrão, nem ficará agitado porque inadvertidamente fecham o caminho por que se passa. Entre eles, algumas figuras relacionadas ao outro caso: pobres ferrados pedindo qualquer coisa de comer ou beber ou fumar para quaisquer pessoas paradas em pé ou em cadeiras, nos bares, nas portas dos prédios, nas pizzarias ou padarias. Os pedidos os tornam visíveis, mas mesmo assim irrelevantes em número e em humanidade. 
Passando direto por todos, os donos e os escravos da noite, retorno pelo mesmo caminho do posto de gasolina, onde, para meu espanto, depois de quase uma hora, está o moço barbudo, desta vez do outro lado da calçada, parado onde poderia haver (e já deve ter havido) um poste com uma placa, outrora. Ele já não gesticula amplamente. Está contido, absorto em algo que aparentemente quer dizer, mas que não se lhe escapa. Olha para o outro lado da rua. À sua esquerda, imensa e descendente, a Consolação. À sua frente, o bico da esquina do posto, de onde deve ter sido enxotado pelos frentistas. Eu não entendo o clima de sua concentração, mas sei que ele existe.
É hora de voltar, deixar as coisas em casa, e xingar com gosto minha memória de filósofo incapaz de abrigar o remédio que já deveria estar tomando. Passei na frente da farmácia e não lembrei, e isso me obriga, obviamente, a sair de novo, como um jumento, fazendo o mesmo caminho duas vezes. Não há remédio: preciso do remédio. Passo, por conseguinte, mais uma vez em frente ao posto, e o rapaz está exatamente no mesmo lugar de poste-espantalho-vigia, no outro lado da rua. Parece agora ainda mais silencioso. Coloca as mãos por dentro da calça, na região pélvica. Balbucia ruídos que não sou capaz de traduzir, mas que devem conter muita experiência de mundo. 
Desta vez, vou e volto mais rápido, mas atendimento de farmácia tem conferência de receita, descontos possíveis, genéricos, nota paulista. São, creio, mais vinte minutos de retorno.
O rapaz continua ali. Praticamente na mesma posição. Desta feita, quando passo, ele estica um pouco mais o corpo, num esboço de contato. Covarde, eu aperto passo e me distancio. Olho para trás e vejo que outro rapaz, camiseta, bermuda, boné e pele lavada, vem subindo também, e por um instante acredito que o moço fará com ele o contato que não fez comigo. Não funciona porque o medo vence mais uma vez.
Continuo entre subir com pressa e olhar para trás. Antes de perder sua silhueta na escuridão, ainda consigo vê-lo retornar ao mesmo lugar de antes. Olhando para a rua. À sua esquerda, a enorme Consolação que desce. Mas que, para ele, parece que nunca vai chegar. 
Eu estou em casa agora, em silêncio.