quinta-feira, 15 de abril de 2010

Doce lar

Esta é a sua casa,
a casa onde você viverá por muito tempo.
Decore estes limites,
acostume-se a querer fundir
seu conteúdo interior
ao conteúdo do espaço ao seu redor.

Esta é a sua casa
e estes são os ruídos da rua.
Assimile-os à sua tranquilidade,
e, se possível, jogue com eles,
invente rostos e histórias
para seus companheiros de ar.

Esta é a sua casa,
o paradeiro de seus pés latejantes
das caminhadas diuturnas do trabalho.
Deite-se em cada um de seus cantos,
descubra fins para o frio do chão,
o morno do tapete, o cálido da cama.

Esta é a sua casa,
não a macule com amigos falsos.
Traga sua mãe, seus irmãos de carne,
seus irmãos de fé, seus camaradas.
Coloque sua geladeira à disposição.
Coloque sua disposição no fogão,
ceda o sofá, os vinhos, a sobra do escasso tempo.

Esta é a sua casa,
esta é a sua cara,
o seu sorriso nas cores das paredes,
o seu sagrado na disposição dos móveis,
o seu contínuo na utilização dos cômodos,
o seu coração na integração com os sonhos.

Esta é a sua casa,
prepare-se para amá-la com a paixão dos dândis.
Prepare-se para estabelecer acordos com ela,
para implorar que ela nunca o abandone,
para perdê-la e ganhá-la quantas vezes o destino determinar.

Este é o pedaço de mundo que você pode chamar de seu.

A dois

Eu sei que escolho sempre a marca mais barata
e que você não come os sanduíches inteiros.

Eu sei que tenho paúra de faxina nas gavetas
e que você ocupa o armário com uma coleção de Barbies.

Eu sei que expresso insatisfação com um silêncio indecifrável
e que você não sorri quando discorda da cor da camisa.

Eu sei que não ando bem-humorado ultimamente
e que você fica esquisita quando não tem preocupações.

Eu sei que uso palavras proibidas pelo contexto
e que você deixa no ar minhas próximas descobertas.

Eu sei que você quer que eu seja rato do convênio
e que você sabe que ainda tenho medo de injeção.

Eu sei que é difícil conviver com alguém tão pouco ambicioso
e que você me inclui em seus projetos a longuíssimo prazo.

Eu sei que estou fora de foco, mais do que fora de forma,
e que você lida muito bem com exigências alheias.

Eu sei de coisas sobre mim que ninguém sabe,
e de coisas sobre você que eu preferia ignorar.

Eu sei que você me quer para viver o que formos capazes,
e que eu quero você para sermos capazes de viver.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Triunfo

Venceu a dor
ao regorgitar as passadas em falso
e polinizar guinadas.

Venceu a sociedade
ao apedrejar expectativas parasitas
com os cacos do último brio.

Venceu a vida
ao consolidar vã permanência
zombando das perfídias do acaso.

Venceu a morte
ao coligir fragmentos de um puzzle
que alguém anseiará terminar.

Só não venceu a arte.
Na arte, o parâmetro da vitória é indecidível
porque a batalha é contra os deuses de dentro.

sábado, 20 de março de 2010

Direito inalienável

Quando encontro alguém ousado a ponto
de confiar em quem nunca viu antes,
de apostar contra toda a evidência,
de caminhar por searas obscuras,
de suportar a gozação do vulgo.

Quando encontro alguém forte o bastante
para enfrentar assédios discursivos
ao nadar contra a maré na tempestade.

Quando encontro alguém lúcido ou louco
a tal ponto de pender para o impossível,
mas certo de ouvir vozes de seu íntimo
e convicto de si como de nada mais.

Quando encontro alguém tão sem limites,
falho sem culpa, salto sem rede de proteção.

Eu também quero ser um ser humano.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Venha

Abra essa porta e você encontrará livros
guiando um neófito no mundo das ideias,
e talvez alguns rascunhos de percepções
menos nobres, mas passíveis de proveito.

Abra essa porta e você encontrará coisas
cujo valor em dinheiro bem aquém está do luxo,
e talvez alguns objetos nitidamente inúteis
cujo valor é dado pela permanência.

Abra essa porta e você encontrará música,
música das palavras entoadas sem discurso,
música dos suspiros, dos cansaços e dos prantos,
música de um violão que absorve qualquer ai.

Abra essa porta e você encontrará projetos
que desculpam-se de cara pela ausência de ganância,
mas que estendem-se no tempo do espírito insatisfeito
como se durassem desde o mesmo sempre.

Abra essa porta e você encontrará um tesouro
entre os destroços do homem que ainda vive na casa:
um coração deixado sobre a mesa da cozinha,
dois braços de cadeira abertos infinitamente.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Ruídos da urbe

Noticiário de TV informa agora
outra desgraça, e mesmas cartas do baralho.
Nas propagandas, propagando-se em disputas,
celebridades com sorrisos de espantalho.

Infelizmente navegar não é preciso.
Acesso a rede e mais do mesmo encontro, tonto.
Copio e colo, clico e teclo, arrasto e solto,
Chateio e blogo, e volto sempre ao mesmo ponto.

Navego o dial do meu rádio em desespero,
e o telefone toca, e é só um aparelho.
E a campainha toca, e é só um tagarela
botando a Fé em mim, e fé no meu dinheiro.

E os olhos fecham, porque a noite se aproxima,
e só então me sinto inteiro, e leve, e longe,
e enquanto a música da urbe estraga o clima,
eu sorvo a música do cosmos como um monge.

Low-tec

Tudo se transforma com grande velocidade.
Eu insisto em dormir até tarde.

Encurtam-se as distâncias no mundo globalizado.
Eu não sei o nome do vizinho aqui do lado.

Todos se maravilham com tanta transformação.
Eu morro de medo de avião.


O mundo está dinâmico, ágil e informatizado.
E eu ainda abotoo a camisa errado.