sábado, 10 de março de 2012
Singularidade
Os servos da Idade Média pertenciam à terra.
Cediam ao senhor feudal o sumo do fruto de seu suor.
Amavam o deus apresentado mediante pagamento de dízimo.
Nunca seriam mais que servos de sua servidão.
E viveram.
Os homens do século XIX desconheciam eletrônicas.
Não possuíam os inimigos da distância: automóvel, telefone.
Sofriam de doenças que hoje são curadas com dois comprimidos.
Sofriam no íntimo como se o sofrimento fosse perspectiva de vida.
E viveram.
Os homens das cavernas dormiam amontoados, famintos e tensos,
porque o uivo do tigre de dentes de sabre era alarme,
e sair para a caça era como sair para um mar misterioso
sem poder determinar os mecanismos dos monstros imaginados.
E viveram.
Se, afrontando o desfavor das condições, ainda persiste
a humanidade, recuperada em cada coração de gente,
que dizer então de formigas, ou plantas, ou algas, gerações e gerações
que seguraram o estandarte da espécie contra todas as extinções em massa?
E viveram.
A vida é uma interjeição no bruto discurso do tempo.
É ruído tonitruante de queda de grão de areia.
É insignificante com significado.
É verbo valente.
É dom.
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012
Pedra e palito
O que eu dizia?
Na mão esquerda, um palito.
Nada mais, nada menos que um príncipe.
Na mão direita, uma pedrinha mais clara,
que era minha irmã mais velha de vestido.
Na crosta do quintal, meus cotovelos,
minha barriga inteira e minhas pernas estendidas,
tudo sujo de terra, até as roupas,
até o pescoço, até cansar da lenda.
O que eu dizia?
Na mão esquerda, um palito
pedindo a mão da pedrinha em casamento;
na garganta a imitação de voz de macho,
e a fácil feminina inflexão daquele "sim".
Na cabeça, um presente que o futuro preparava,
a casa de morarmos todos nós,
família da noiva, numa cidade em que as ruas
tinham quentura de asfalto e circulação distinta.
O que eu dizia?
Na mão esquerda, um pedaço de madeira
capaz de cutucar tudo no mundo,
e na direita, a pedra pronta
para o arremesso na distância do porvir.
No coração, qualquer vitória,
qualquer possível revelação de última hora,
qualquer milagre que ampliasse para muito
a extensão do encantamento no quintal.
Quem diria...
Na mão esquerda do tempo agora,
um controle remoto; na direita queda,
um aparelho celular; os cotovelos
recostados no sofá; barriga e pernas,
tudo sujo de preguiça; e os palitos
são não mais que meros fósforos; e as pedrinhas,
chuto. Sem cerimônia. Chuto.
As lamas fictícias e inodoras
do aparelho de tevê, quintal sem vida,
mantêm meu coração farto da única pobreza:
aquela em que tudo já foi dito e se acabou.
quarta-feira, 25 de janeiro de 2012
O caminho
Ah! Tanta beleza
é possível ver!
É possível haver tanta beleza
quando estou sozinho?
Fragmentos de beleza
no deserto do caminho
servem pra quê?
Ah! Tanta certeza
é possível ter!
É possível manter tanta certeza
quando estou sozinho?
Rudimentos de certeza
no infinito do caminho
servem pra quê?
Ah! Que fortaleza
que é possível ser!
É possível descer da fortaleza
quando estou sozinho?
Nas cavernas da tristeza,
esconder-se do caminho
serve pra quê?
sexta-feira, 25 de novembro de 2011
Cozinhando
Mente vazia,
panela do dia.
Mente inda rasa,
panela na brasa.
Mente preenchida,
panela e comida.
Mente perfeita,
panela e receita.
panela do dia.
Mente inda rasa,
panela na brasa.
Mente preenchida,
panela e comida.
Mente perfeita,
panela e receita.
Fórmula
Politicamente correto = politicamente discreto = politicamente secreto.
Discussão + respeito + afeto + público + laico + aberto + tesão transbordando pelo teto
= concreta condição (ou papo reto).
Politicamente concreto.
Discussão + respeito + afeto + público + laico + aberto + tesão transbordando pelo teto
= concreta condição (ou papo reto).
Politicamente concreto.
Parecer
Os grandes poetas
fazem a poesia
parecer poesia.
A leitura dos grandes poetas
faz poesia como a minha
parecer certas vezes poesia
de grandes poetas.
E a minha leitura dos grandes poetas
faz parecer
que alguém já fez um dia
poesia como a minha
acontecer.
fazem a poesia
parecer poesia.
A leitura dos grandes poetas
faz poesia como a minha
parecer certas vezes poesia
de grandes poetas.
E a minha leitura dos grandes poetas
faz parecer
que alguém já fez um dia
poesia como a minha
acontecer.
domingo, 15 de maio de 2011
Gente diferenciada
Um lugar é sempre um nada
definido pelo tudo
que chamamos conteúdo,
perfazendo uma área dada.
Um lugar, quando é de gente,
é uma área condenada
a abrigar regularmente
gente diferenciada.
definido pelo tudo
que chamamos conteúdo,
perfazendo uma área dada.
Um lugar, quando é de gente,
é uma área condenada
a abrigar regularmente
gente diferenciada.
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