sexta-feira, 29 de março de 2013

Subgestão



Quando as pessoas têm vergonha do que são,
o nome dado à máscara da força na gestão
é sugestão.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Almoço sem as estrelas



Restaurante,
Parede de espelho,
Aparelho de TV.

De frente pra mim,
De costas pro aparelho,
Penso comigo assim:

Não que eu seja tão bonito,
Mas que tem coisa bem pior,
Ah, eu acredito!

Assimilação de Nelson Cavaquinho



Quando piso em folhas secas,
Ouço o crep crep crep
Da decrepitude.

Na ilusão do lar conforto,
As pantufas no tapete
Soam blef blef blef.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Sem ver



Páginas-cortinas vão virando
Atabalhoadamente em função do vento.

Ninguém está sentado perto da janela
Olhando a janela de outro apartamento.

Ainda assim, a mão da ausência acena alegre
Um gesto nobre de desintegração.

Nenhum olhar não lê-vigia o mundo.
Mas uma voz alcança e abarca a solidão.

sábado, 9 de março de 2013

Terra de gigantes



Um homem que não tinha a perna esquerda
deixou suas muletas de lado,
ergueu a pedra gigantesca
e arremessou contra o vidro do carro.

E outro homem gigantesco, bruto e
distraído, falava ao celular.
Pensaram: "Com a polícia". Mas não era.
Era o Amor que não queria escutar.

O gigantesco estrondo foi sentido
para além nos menestréis em revoada.
Na tela da TV o jornalista e o presidente.
Ninguém sabia de nada.

domingo, 3 de março de 2013

Espírito forte



Eu já quis a inteligência do gênio
Pra ganhar prêmio e cartaz
Eu já quis a habilidade do líder
Que sabe, quer, fala e faz
Eu já quis falar a língua do craque
Com o sotaque do gol
Hoje eu quero ter o espírito forte
E dar suporte ao que sou

Eu já quis a grana preta dos bancos
Sem trancos e sem suor
Eu já quis os prêmios de loteria
E um dia um dia melhor
Eu já quis o lucro fácil e canalha
Que outra gentalha embolsou
Hoje eu quero ter o espírito forte
E dar suporte ao que sou

Eu já quis a silhueta perfeita
A pinta nobre de ator
Eu já quis a voz de Elis e de Ney
Quando teimei ser cantor
Eu já quis ter o talento dos astros
Ou mesmo lastro sem show
Hoje eu quero ter o espírito forte
E dar suporte ao que sou

Eu já quis ter o poder dos tiranos
Para os meus planos de bem
Eu já quis poder ser quisto por visto
E até poder ser ninguém
Eu já quis a reverência dos frágeis
Que a falsa imagem gerou
Hoje eu quero ter o espírito forte
E dar suporte ao que sou

Eu já quis ter a volúpia das feras
Nas priscas eras de horror
Eu já quis tudo o que alguém quer um dia
Mas que jamais conquistou
Eu já quis até querer mais que quero
Mas a vontade tardou
Hoje eu quero ter o espírito forte
E dar suporte ao que sou

Hoje eu sei que sou mais interessante
Em meus rompantes de não
Hoje eu sei que na ambição que faltava
Estava viva a lição
Hoje eu sei que o desafio começa
Onde a promessa murchou
Hoje eu quero ter o espírito forte
E dar suporte ao que sou

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Luva de Pelica


I

As intempéries levam teus bens
E tudo que mantiveste, prendeste, retiveste
Como se o destino dera.

Pessoas espertas levam tuas receitas
E produzem riquezas superiores
Às que forjaste de teus atributos.

Tuas opiniões despencam no outono
Sem completar a maturidade de um ano
Porque sempre há mentes mais argutas.

Tuas conquistas abarrotam o sótão,
Mas nenhuma delas paga as contas do feijão,
Porque quadros na parede não trabalham.

Teu próximo pode ter tantas qualidades
Quanto o próximo de teu próximo,
E as tuas são simplesmente as de outro próximo na conta.

Não te fies na vitória fácil
Porque a vitória sobre ti será tão fácil quanto,
E as forças do fado sempre querem revanche.

É, amigo. Essa é a História.
Essa é a condição de estar e não ter.
Essa é a ferida egótica que a vista recusa.

Há milhões de maneiras de mostrar
Cabalmente à consciência arrogante
O tamanho real do ser que és.

A experiência da humilhação não tarda,
Seja pela mão que apedreja e aponta,
Seja pela transitoriedade da condição humana,

Seja pela dança dos sucessos e fracassos,
Seja pelo descalibrado da balança moral,
Seja mesmo pelo acaso, ou pelo tédio, ou pela impossibilidade de assumir-se um a mais.


II

Tu talvez não saibas, mas a mais didática
E constrangedora operação de humilhação
Não vem da violência das palavras,

Não vem do temperamento autoritário,
Não vem da maledicência pura e simples,
Não vem da competição sem rédeas,

Não vem da sedução, da perspicácia,
Não vem do Mal, da dor, do soco, do azar,
Do ódio, do rancor, da crueldade:

Essa sanção devastadora e dura,
Essa sanção destruidora e inevitável
É aquela que te aplica a nobre alma,

Quando, sabendo do teu infinito de faltas
E de tua inapetência de saná-las,
Ainda oferta um peito aberto de perdão.