domingo, 23 de fevereiro de 2014

Perigo nas entranhas

A Lua ainda inspira o lobo
Fossilizado na espinha do cão,
Como o vento refresca a crina
Do homem no alto do edifício.

Ondulações de barbantes excitam
Linces guardados nas unhas dos gatos.
Pterossauros nos esqueletos dos pombos
Arrogam-se ainda a posse dos céus.

O espírito da onça em caça
Pesa no acelerador, e embala.
A sede dos símios mergulha os pés
Nas águas do lago do parque.

Cuidado, cidadão humano!

Não deixe a vida de verdade
Contaminar o ecossistema da selva de pedra.


Não alimente os animais!

domingo, 29 de dezembro de 2013

Professor


Entre montes e vales,
Entre escombros e altares,
Entre estranhos e pares,
Labutar.

Entre luzes e sombras,
Entre essências e sobras,
Entre esboços de obras,
Lecionar.

Entre cobras e amigos,
Entre poços e abrigos,
Entre amparos e avisos,
Produzir.

Entre olhos e nervos,
Entre fases e pesos,
Entre alunos e ilesos,

Professar.


sábado, 28 de dezembro de 2013

Soneto da rede social


Aguardo a tua última postagem
Postagens explorando, aleatórias.
Aguardo o desenlace dessa história
Como um tigre faminto e sem coragem.

Quem dera uma indireta de passagem

Moesse as esperanças irrisórias,
Trazendo-me saudades e memórias
Maiores que o atrativo das bobagens.

No fundo, satisfaço-me em imagens

Que servem de alimento e fantasia
Às fábulas que a rede me permite.

E enquanto minha mente está vazia,

A foto, o riso, a voz e outras miragens
Aguardo em meu estúpido apetite.


segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Jovem tagarela


Era difícil falar com heróis e fadas
E pessoas menos bonitas que desenhadas.
Era difícil falar com portadores de certezas
E com as bocas cheias do prazer da mesa.
Era difícil falar com o vocabulário que eu tinha
E com sentenças-princípios de gente cretina.

A "democracia" do meu entorno era o não,
Fabricado nos profundos do pulmão.
A "inclusão" ao meu redor era o grito mais alto
Que sobrepunha quaisquer conclusões a quaisquer fatos.
A voz subia escadas de agonia.
O conteúdo do dizer era o próprio direito
De dizer o que dizia.

Eu não queria ser aceito por ninguém naquele momento.
Eu queria tirar as borboletas de dentro.
Queria respostas a perguntas sem dúvidas,
Talvez ser nauta de águas turvas.
Falava às paredes e aos cães que me lambiam
Numa poesia a que faltavam adereços de poesia,
Voz de pirralho enlevado com a guitarra nova,
De criança embirrando: criança, uma ova!,
De um certo alguém em certo ritual só seu,
De presumido gigante em pele de pigmeu,
De porta-voz de amigos imaginários,
Garganta sem escopo em seus disparos.

Falava a quem queria ouvir as canções do momento,
Mas de que valeria, Cássia, lançar palavras ao vento
Se o deus do vento tivesse cera nos ouvidos,
E as sereias não sorvessem meus gemidos?

Era difícil falar de assunto interessante
Sem ouvidos que sacassem o adiante
Além do ali diante.
Difícil almejar tesouros  não cobiçados
Sem lidar com estranhamentos de sensos solidificados.
Difícil perceber que eu falava sozinho
E que esse prazer era menos que carinho
E muito mais que poder.


domingo, 8 de dezembro de 2013

Bolinhos de chuva


Conte sua história
Antes que ninguém mais pergunte.

Declare descaradamente seu amor
Enquanto o impulso tem palavras.

Ria de si mesmo e siga em frente
Enquanto seus pés têm saúde.

Se há uma pessoa linda,
Convide-a para dançar.

Se você se sente perfeito,
Roube um brigadeiro da mesa.


Cante aquela canção
Cuja letra você nunca soube.

Atinja um alvo
E comemore comendo um bombom.

Dê presentes todo dia.
Faça carinho nos seus bichinhos.

Beije os olhos de uma criança
E deixe ela sair correndo.

Grite palavrões ridículos
E as raivas divertirão os amigos.


Bata palmas para o sorriso
E para o sol que desabrocha.

Olhe as diferenças do céu
Enquanto nem todas brilham em cinza.

Diga o que pensa
Para saber com clareza o que sente.

Abrace uma árvore
Antes que seja tarde.

Abrace seu mundo
Enquanto chamá-lo de seu.


sábado, 7 de dezembro de 2013

Decrepitude


Bate o vento na janela,
Bate o vento no jardim,
Treme a chama desta vela,
Como o tempo treme em mim.

Bate o vento como os dias
Batem forte na vaidade.
Treme a vida, enfrenesia,
Contra as pústulas da idade.

Bate o vento desfolhante
No jardim de quem foi gente.
Corta o flor do meu semblante,
Deixa vácuo intermitente.

Bate o vento na ferida,
Leva o dente-de-leão.
Leva o leve desta vida
Deixa a dor da escuridão.


quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Canção fremente


Queria que os arrepios da pele pudessem tanger as cordas de um violão.

Queria que o tremor das pálpebras pudesse pulsar sobre os canos de um xilofone.

Queria que os espasmos dos músculos pudessem impulsionar o sopro dos metais da orquestra.

Queria que as palpitações do peito pudessem chocar pratos, socar bumbos, soprar tubas profundas.

Maestro do meu amor,
partitura do meu prazer,
intérprete da minha febre,
queria gemer tão alto
que a melodia do tato,
do pelo, do corpo, da pélvis,
derramasse do copo da arte
para a mesa do banquete,
talheres cruzados nos pratos,

restos de mel e exaustão.