sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Passa, gente



Nessa vida passageira,
Passa gente por demais.
Passa gente de primeira,
Passa gente patamaz.

Gente nobre e verdadeira,
Que Deus gentilmente faz.
Gente que, se der bobeira,
Passa a gente para trás.

Gente boa-praça, arteira,
Trata os outros como iguais.
Gente crassa, fala asneira,
Passa à frente coisas más.

Gente esparsa, brasileira,
Fabricando seus sinais.
Gente grassa, bagaceira,
Passa ingente e vai salaz.

Gente massa, brincadeira,
Passa e sente, volta e faz.
Gente falsa, brigadeira,
Passa e mente, linguaraz.

Nessa farsa prazenteira
De chalaças geniais,
Gente passa a vida inteira.
Passe sempre. Passe mais.


A bem do condenado


Meus milhões de defeitos justificam
Consequências que caem sobre mim.
Cada vez que transgrido um combinado
Punições põem-me à parte do ruim.

Não reclamo das penas imputadas,
Não reclamo de nada, sei quem sou.
Só que, atrás dos defeitos do caráter,
Há uma face que nunca se mostrou.

Se essa face mirasse o horizonte
Com seus olhos profundos, comovidos,
Os carrascos que araram minha carne
Lembrariam com dó dos meus gemidos,

E as pessoas que um dia me julgaram
Pelas leis rigorosas de seus reinos,
Lembrariam que Deus tem leis maiores
E que enxerga as verdades que não vemos,

E eu teria sanções na dose exata
De fazer-me melhor para o outro dia,
De aprender pelo aporte de meus erros,
De aceitar minha própria companhia.



Pé na jaca


Quando a noite te questiona
Se as paredes de teu quarto
Sabem que tu és cafona,

Que essa hora é sempre um parto,
Que essa fleuma é fingimento,
Que não tens poder de fato,

Curte a vida cem por cento,
Banca o teu deliramento,
Tira o pé do barco errado,

Manda logo esse torpedo,
E se for atrevimento,
Pensa nisso amanhã cedo.

Cada qual no seu quadrado...


Cada qual com seu segredo...


terça-feira, 15 de outubro de 2013

Fogueira


Crepitam fantasmas
Entre gravetos e brasas:

O fogo tem asas.


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

O bom combate


Se tive o mérito do empate
com quem não sabe da disputa,
foi por treinar para o combate
só minha parte biruta.


Dia de descanso


Da quitinete identifico
gritos e britadeiras,
murmúrios e rangidos
ao longe e ao fundo.

É silêncio na cidade.

Seu


Não passe morna por mim. 
Sorva-me sem parcimônia.
Se a lágrima louva, vale a pena:
adote meu lema,
assuma meu leme,

leia-me.

domingo, 6 de outubro de 2013

Lugar exato


Escrever é uma forma
de colocar ordem nas ideias,
dizem meus manuais de redação.

Dançar deve ser uma forma
de colocar ordem nos sentidos.
Cantar deve ser uma forma
de colocar ordem nas emoções.
Isso não é dito
pelos manuais dessas artes.

Viver deve ser uma forma de desordem
complementar ao canto, à dança, à escrita,
servindo de matéria bruta e substrato
à elucidação do sentido.
No momento em que rodo, entoo, aperto a caneta,
muitas coisas simplesmente são.
Por isso, os manuais de viver
não nos dispensam das alegrias.

Amar, por sua vez,
deve ser uma forma de cantar, dançar, escrever,
assoviar e chupar cana ao mesmo tempo.
O amor pega a vida e a coloca em seu lugar exato.
Todas as coisas passam a ter sentido.
Tudo fica afinado,
todo movimento é leve,
toda linha torta escreve certo.
Ideias, sentidos e emoções parecem costurados sem remendos
no tecido da existência atual, pregressa, posterior.

O único problema insolúvel de se amar
e preencher sua vida e sua arte com o amor
é saber depois o que fazer
com os manuais.

sábado, 5 de outubro de 2013

Macho


Está difícil achar um homem
Com o peso justo do macho
Cheiro e força de varão
Maturidade de sábio

Está difícil achar um homem
Macho, mas não machão
Seco perante a frescura
Justo perante a razão

Está difícil achar um homem
Com o lado belo do macho
Reto, direto e concreto
Com hesitações mil por baixo

Está difícil achar um homem
Macho, mas não limitado
Que aceite seu lado menino
Quando se deita ao meu lado

Está difícil achar um homem
Bom nos deveres do macho,
Fraldas trocando, e lavando
Roupas sujas de relaxo

Está difícil achar um homem
Com o jeito próprio do macho
Meigo no toque e no beijo,
Mau na pegada dos braços

Está difícil achar um homem
Macho, sem ser escroto
Que goste de fato de mim
E não apenas do meu corpo

Está difícil achar um homem
Puro nas dores de macho,
Pronto a aprender com conselhos
A ouvir e filtrar meus escrachos

Está difícil achar um homem
Hétero na orientação,
Macho na língua do vulgo,
Igual na humana condição.

Único caminho


Há duas formas de entender a história,
Há duas formas de ajustar a mente.
Ou você pode acreditar nos fados,
Acreditar que tudo está no trilho,
Ou você pode debandar de lado,
E acreditar que o mundo pede auxílio,
E alimentar-se em fé renovatória:
Das duas, uma: ou marionete, ou gente.

Se você quer do igual sempre a vitória,
De um ego cego que só segue em frente,
Seu mundo fica pré-determinado,
Sem horizonte, ascende um sol sem brilho.
Mas se do idílio está desenganado,
Se você crê que o ego é um empecilho,
Você se afasta da verve ilusória.
Destrói disfarces imediatamente.

Das duas formas desse estar no mundo,
Entre a quimera e o esforço de ser pleno,
Apenas uma vale o próprio custo:
A escolha é decisão definitiva.
Quem semear com seu querer profundo,
Quem mantiver seu coração sereno,
Verá passados e amanhãs sem susto:
Florescerá da própria iniciativa.

Existe humanidade além da dor,
Além do engano e além da solidão,
Quando o alienado aprende a ser ator.
A escolha é sempre mais que um sim ou não.