No meu tempo não havia essa corrupção desenfreada
De valores financeiros e de caráter,
Porque viver era tudo o que cada um tinha,
E todos respeitavam a oportunidade.
No meu tempo também não havia
Esses largados sem rumo nas calçadas,
Porque o Estado e a sociedade e as organizações
Tinham por meta distribuir algum amparo.
No meu tempo não havia vigilância,
Porque as leis de convivência soíam serem leis,
E o trânsito, os concursos, as ocupações, as causas
Fluíam, encaminhados sem histerias e processos.
No meu tempo crianças podiam ser adotadas
Por casais de qualquer orientação afetiva,
E os corpos das pessoas eram templos
Que abrigavam apenas cultores do respeito.
No meu tempo pobres e ricos andavam de avião
E o avião só tinha primeira classe,
E as baladas só tinham gente bonita
De todas as cores e credos e modas e salários.
No meu tempo, não havia estrangeiros e migrantes,
Porque o povo sabia que a história dos povos
Dependia da comunhão de culturas distintas,
E as fronteiras do país eram pro forma.
No meu tempo as diferenças de poder
Diluíam-se na fala pública negociada,
Mais ampla que a democracia majoritária
Porque apta a integrar as minorias opacas.
No meu tempo Deus não fazia distinção
Entre fiéis de uma ou outra vertente.
Religiosos falavam de Deus pelos olhos
E pela língua delicada de mãos que obravam o bem.
No meu tempo todos sabiam primeiros socorros e Libras,
Todos davam de seu tempo para causas belas,
Todos cozinhavam para refugiados e carentes,
A educação era responsabilidade geral.
No meu tempo não havia quem não tivesse
Ao menos em algum momento da jornada
Experimentado a hospitalidade do semelhante
Para conhecer as receitas da integração.
É por isso que bato no peito com muito orgulho,
E meu olhar, quando medito, brilha de emoção,
Pois nunca haverá um tempo como meu tempo:
O tempo que eu vivo para iniciar.
segunda-feira, 7 de setembro de 2015
sábado, 28 de março de 2015
Retorno
Às vezes as pessoas dizem:
"Queria retornar no tempo
A certo ponto do passado
A fim de corrigir meu erro".
Ledo engano: não é preciso.
Deus sabe nossas demandas,
E traz o passado de volta,
Dizendo: "Tente de novo".
Ele recria circunstâncias
Ponto por ponto vividas
Para entendermos os erros
Como rascunhos de escolhas.
Quando menos percebemos,
Estamos nos mesmos lugares,
Com as mesmas pedras nas mãos,
Só que agora mais humanos,
Em fausto e eterno retorno,
Até que nos sumam dos sonhos
As marcas sombrias e incômodas
De que errávamos ali.
sexta-feira, 27 de março de 2015
Herança
Meu nome é pronunciado
sempre que palavras minhas
- organizadas por meu fígado
e arremessadas entre meus dentes -
resistem na superfície
das ondas de informação.
Meu nome permanecerá
quando o sangue estancar nas veias
e o que me define for morar
no lado escuro da Lua.
A você não deixarei
nem nome nem sangue de meu,
nem cantilenas alquebradas
que em nada me lembrarão.
O melhor do meu patrimônio
- seu, desde sempre e já -
é o livre e intemporal acesso,
palavra por palavra e além,
às clareiras da selva sem mapa
que julgam formar meu jardim.sábado, 14 de março de 2015
Você é Bach?
Acaso você é o autor
Da Missa em si
menor?
Acaso você que
escreveu
Sobre os amores de
Romeu?
Vem de seu pincel a
divisa
Dos traços da Mona
Lisa?
Sai de seu panteão
algo à altura
Do Cavaleiro da
Triste Figura?
Algo de seu ficou
inscrito
Nalguma pirâmide do
Egito?
Se a sua resposta é
sim,
Minha busca chegou
ao fim.
Se a resposta é
negativa,
Deixe-me viver. E
viva!domingo, 8 de março de 2015
Sincronia das mônadas
Quando
Deus permitiu que eu sondasse,
do
ínfimo ao descomunal,
todos
os setores da existência,
conhecesse
cada combinação química,
cada
partícula e cada conjunto,
que
forma riqueza sólida,
orgânica,
viva, inteligente, sistêmica;
quando
Deus permitiu que acessasse
todas
as almas havidas,
todas
as almas futuras,
cada
um dos corpos que as abrigasse,
cada
uma das famílias que as conhecesse,
cada
laço de relação que produzissem;
quando
Deus permitiu que fruísse
de
todo o conhecimento e toda a experiência,
de
todo olhar e toda ação de sentido de cada ser
em
sua construção limitada entre nascença e morte;
quando
Deus colocou à minha disposição
todas
as verdades e belezas
de
todos os tempos, passados ou futuros,
de
todos os planetas e galáxias do universo,
e
mais de todos os universos possíveis
e,
se não fosse já suficiente,
de
todos os que se possam imaginar
por
um espírito supostamente sem freios,
ou
quaisquer outros que se pudessem buscar
em
pensamentos e informações dentro ou fora do existente;
quando
Deus assim o fez e sua voz
bradou,
tonante: "- Faz tua escolha, rapaz!",
escolhi
só três coisas:
ser dividido contigo na mitose do
caldo primordial;
estar neste momento, neste lugar e deste jeito beijando teus lábios;
fugir nalgum dia do futuro como raio
de luz
formado de minha e tua energia
pelos confins do infinito.
quarta-feira, 21 de janeiro de 2015
Família
Vi quatro homens ocupando
dois velhos colchões sobre a grama
e a terra do viaduto,
barranco do Minhocão.
Dentro de cada um deles,
havia um coração.
Dentro de cada coração
havia três companheiros
trocando bitucas molhadas
e algum café muito ralo.
Vi uma moça perfeita,
dentes e unhas afiados,
destoando de pai e mãe,
namorado, irmão e cachorro.
Dentro de sua mente
havia pai e mãe, namorado,
irmão, cachorro, inimiga,
chefe, shopping, cartão de crédito,
programa de TV e celular de ponta,
cada qual em sua posição,
ou mais ou menos isso.
Em seu coração,
não havia ninguém.
domingo, 18 de janeiro de 2015
Superlua
A Lua gigantesca
na janela.
Um livro aberto em
versos eloquentes.
Um cobertor e um
chocolate quente.
O silêncio mais
sugere que flagela.
Estouro de pipoca
na panela.
Vontade de levar
pipoca aos dentes.
Resquícios de
parceiros hoje ausentes.
Vontade de
limpá-los na flanela.
Paredes
condizentes com desejos
Tamanhos,
incabíveis no organismo.
Telhados frágeis,
prestes a explodir.
A luz da Lua
mostra ao ser que ri
O amor,
escancarando seu cinismo...
...e eu olho da
janela e nada vejo.
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