domingo, 27 de dezembro de 2009

Muito cacique

Dito em bom tupiniquim:
só cacique tem cacife
de cuidar do seu jardim.

Dito para seu governo:
é melhor, cego, ver nada,
que mancomunar co'o demo.

Em vez de mandar, ser demandado.
Em vez de ordenar, ser ordenhado.
Em vez de lutar, ser enlutado.

E em vez de ter vez,
enviesado.

De vez em quando

Se os homens de bem cometessem maldades
de vez em quando
Se gurus impolutos ousassem pecados
de vez em quando
Se cucas pensantes pirassem o coco
de vez em quando
Se ínclitos cidadãos burlassem as regras
de vez em quando
Se esposas e esposos quebrassem seus votos
de vez em quando
Se todos os seres soltassem
seus monstros do peito
de vez em quando

e só de vez em quando

A vida em sociedade seria perfeita
para sempre

Pinky e Cérebro

O homem inteligente
terá o domínio do mundo,
por certo, um dia, perdendo
o domínio de si mesmo.

O homem sábio não perde
o domínio de si mesmo,
por certo, um dia, podendo
chegar ao domínio do mundo.

Dois oceanos

Quando é bomba de Truman,
o dedo indica o Pacífico.

Quando é gesto de Gandhi,
a mão pacifica o Índico.

Fixação

O que tu chamas de hipnose,
e eu, de compenetração,
é mais uma questão de dose
que de nome.

Na pressa, o olhar rui por dentro,
comprometendo a apreciação,
condicionando o encantamento,
tirando a graça da fome.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Sol do peito

Mantive as janelas fechadas no frio.
Cuidei de calafetar cada fresta.
Só caminhava com pantufas substanciadas,
e cobria as cobertas com cobertas,
como se acampasse em cima da cama.

Quando esse tempo passou, a morte
deixou de bafejar ameaças, e corri
com alegria em direção às portas
da alma na qual meu corpo se refugiara
por receio do sorriso no rosto do sol.

O sol tinha deixado um recado
na caixa antiga de correspondência,
um aerograma que assim dizia:
"Bati na porta da sua alma,
depois, bati em retirada."

"Venha me buscar, que a alma
de luz por mim parasitada
morreu, desabrigando um corpo inerte,
cuja única satisfação erótica
era poder fingir ter as rédeas".

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Baleia interior

Eu olho para uma planície intocada
que se estende até o limite do turvo,
e milhares tons de verde que se alternam
nos túneis de grama e flores e densidade
tornam-se inapagáveis nos favos da mente.

É por isso que eu posso cerrar os olhos
e contar ainda com o acolhimento
dessa extensão do instinto, muito embora
o espaço do sentir, mais seletivo,
toque o essencial, e perca o todo.

Da mesma forma, quando tua exuberância
mostra-se ampla de sequer caber em ti,
e os sentidos pulam para fora, enlouquecidos,
tentando dar conta de cobrir essa amplidão
mesmo reconhecendo-a de impossível remate,

quando isso acontece, cerro estes olhos e,
enquanto imagino que és tudo em minha volta,
envio um canto a ser captado a quilômetros
de distância de teu corpo, de teu vulto, de tua presença,
lá onde a planície que és verdeja ainda.