sexta-feira, 15 de março de 2013

Assimilação de Nelson Cavaquinho



Quando piso em folhas secas,
Ouço o crep crep crep
Da decrepitude.

Na ilusão do lar conforto,
As pantufas no tapete
Soam blef blef blef.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Sem ver



Páginas-cortinas vão virando
Atabalhoadamente em função do vento.

Ninguém está sentado perto da janela
Olhando a janela de outro apartamento.

Ainda assim, a mão da ausência acena alegre
Um gesto nobre de desintegração.

Nenhum olhar não lê-vigia o mundo.
Mas uma voz alcança e abarca a solidão.

sábado, 9 de março de 2013

Terra de gigantes



Um homem que não tinha a perna esquerda
deixou suas muletas de lado,
ergueu a pedra gigantesca
e arremessou contra o vidro do carro.

E outro homem gigantesco, bruto e
distraído, falava ao celular.
Pensaram: "Com a polícia". Mas não era.
Era o Amor que não queria escutar.

O gigantesco estrondo foi sentido
para além nos menestréis em revoada.
Na tela da TV o jornalista e o presidente.
Ninguém sabia de nada.

domingo, 3 de março de 2013

Espírito forte



Eu já quis a inteligência do gênio
Pra ganhar prêmio e cartaz
Eu já quis a habilidade do líder
Que sabe, quer, fala e faz
Eu já quis falar a língua do craque
Com o sotaque do gol
Hoje eu quero ter o espírito forte
E dar suporte ao que sou

Eu já quis a grana preta dos bancos
Sem trancos e sem suor
Eu já quis os prêmios de loteria
E um dia um dia melhor
Eu já quis o lucro fácil e canalha
Que outra gentalha embolsou
Hoje eu quero ter o espírito forte
E dar suporte ao que sou

Eu já quis a silhueta perfeita
A pinta nobre de ator
Eu já quis a voz de Elis e de Ney
Quando teimei ser cantor
Eu já quis ter o talento dos astros
Ou mesmo lastro sem show
Hoje eu quero ter o espírito forte
E dar suporte ao que sou

Eu já quis ter o poder dos tiranos
Para os meus planos de bem
Eu já quis poder ser quisto por visto
E até poder ser ninguém
Eu já quis a reverência dos frágeis
Que a falsa imagem gerou
Hoje eu quero ter o espírito forte
E dar suporte ao que sou

Eu já quis ter a volúpia das feras
Nas priscas eras de horror
Eu já quis tudo o que alguém quer um dia
Mas que jamais conquistou
Eu já quis até querer mais que quero
Mas a vontade tardou
Hoje eu quero ter o espírito forte
E dar suporte ao que sou

Hoje eu sei que sou mais interessante
Em meus rompantes de não
Hoje eu sei que na ambição que faltava
Estava viva a lição
Hoje eu sei que o desafio começa
Onde a promessa murchou
Hoje eu quero ter o espírito forte
E dar suporte ao que sou

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Luva de Pelica


I

As intempéries levam teus bens
E tudo que mantiveste, prendeste, retiveste
Como se o destino dera.

Pessoas espertas levam tuas receitas
E produzem riquezas superiores
Às que forjaste de teus atributos.

Tuas opiniões despencam no outono
Sem completar a maturidade de um ano
Porque sempre há mentes mais argutas.

Tuas conquistas abarrotam o sótão,
Mas nenhuma delas paga as contas do feijão,
Porque quadros na parede não trabalham.

Teu próximo pode ter tantas qualidades
Quanto o próximo de teu próximo,
E as tuas são simplesmente as de outro próximo na conta.

Não te fies na vitória fácil
Porque a vitória sobre ti será tão fácil quanto,
E as forças do fado sempre querem revanche.

É, amigo. Essa é a História.
Essa é a condição de estar e não ter.
Essa é a ferida egótica que a vista recusa.

Há milhões de maneiras de mostrar
Cabalmente à consciência arrogante
O tamanho real do ser que és.

A experiência da humilhação não tarda,
Seja pela mão que apedreja e aponta,
Seja pela transitoriedade da condição humana,

Seja pela dança dos sucessos e fracassos,
Seja pelo descalibrado da balança moral,
Seja mesmo pelo acaso, ou pelo tédio, ou pela impossibilidade de assumir-se um a mais.


II

Tu talvez não saibas, mas a mais didática
E constrangedora operação de humilhação
Não vem da violência das palavras,

Não vem do temperamento autoritário,
Não vem da maledicência pura e simples,
Não vem da competição sem rédeas,

Não vem da sedução, da perspicácia,
Não vem do Mal, da dor, do soco, do azar,
Do ódio, do rancor, da crueldade:

Essa sanção devastadora e dura,
Essa sanção destruidora e inevitável
É aquela que te aplica a nobre alma,

Quando, sabendo do teu infinito de faltas
E de tua inapetência de saná-las,
Ainda oferta um peito aberto de perdão.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Na melodia



Considerando que a Literatura é a música das ideias,
Que a Poesia é a música das palavras,
Que as palavras são a música das letras,
Que as letras são a música do ler.

Considerando que o Cinema é música das cenas,
Que as cenas são música das formas,
Que as formas são música do espaço,
Que o espaço é música no caos.

Considerando que a paixão é a música do impulso,
Que a vontade é a música do instinto,
Que a bem-querença é a música do intuito,
Que o amor é a música do enfim.

Considerando que a natureza tem harmonia,
Que a humanidade tem compasso,
Que os indivíduos têm timbre
Que a civilidade tem tom

Considerando que a música das células é o corpo,
Que a música das buscas é o espírito,
Que a música dos sonhos é a alma,
E a música das músicas é o Todo.

Posso dizer, sem tormentas:
Toda minha vida tem sido
Dançar conforme a música,
Rosto colado no rosto do tempo.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Imo chamado sibilante


Falamos a mesma língua
Quando gaguejamos.

Temos toda razão
Simultaneamente.

Nosso elo é o duelo
Sincero de essências,

Nosso embate de serpentes
Pela toca diminuta.



Estaremos de acordo
Quando desacordados.

Venceremos nossos erros
Quando um de nós não os disser.

Pintados de tinta de batalha
Da seiva volúpia extraída,

Teremos pressa de atualizar
A presa e o predador.



Estalaremos, cada qual,
com o estigma devido.

Cada qual com o gosto alheio
Da pele em qualquer resultado.

E amanhã as cascas das feridas
Serão estilhaços de espelho.

Fomos feitos um para o outro.
E os dois de nós para o mesmo.