domingo, 4 de maio de 2014

A vida vence


O espírito de um homem sobrevive
Ao corpo, à morte, à desintegração.
Eu deixo um pouco deste coração
Em cada tempo e chão no qual estive.

Eu deixo os bens que amei (e nunca tive
Um bem maior em retribuição),
E deixo a história minha de lição
Com todos os meus erros, inclusive.

Não é preciso ser um detetive
Pra ver que, na extensão desta existência,
Nossa existência muda de extensão.

Não é preciso armar-se de tal crença,
Pra ver que a vida vence, e, queira ou não,
O espírito de um homem sobrevive.


terça-feira, 29 de abril de 2014

Abstração


Radiofrequências ativas
Fazem estragos de luz e cor
No tubo do televisor.

As traças atravessam a estante
Usando ativamente meus livros
(saciedade dos insetos vivos).

Nos armários e gavetas da cozinha
Um brilho metálico de inércia impecável
Caminha.

Bits e bytes esbatem-se na tela,
Como flores colorindo a primavera.
No monitor, a rede é teia,
Onde a mosca do mouse passeia,
Sem cuidado e sem aviso.

Enquanto isso,
Sentado no sofá,

Eu briso.

domingo, 20 de abril de 2014

No colo


Quente no berço dos braços
Que é o melhor leito da vida,
Dorme, bebê, no compasso
Desta canção distendida.

Dorme esperando um sibilo
Suavemente presente,
Como um riacho tranquilo
Numa savana sem gente.

Dorme esperando um zunido
Suavemente esquisito,
Como um cochicho emitido
Pelo ir e vir de um mosquito.

Dorme esperando uma nota
Suavemente entoada,
Como pisada de bota
De quem vem da madrugada.

Dorme esperando mais nada,
Suavemente risonho.
Dorme da minha balada,
Que eu dormirei do teu sonho.

Dorme, bebê, sem cautela,
Dorme do meu acalanto,
Como uma ingênua donzela
Sob o condão de um encanto.

Dorme que a noite é chegada,
Dorme que o sonho é partida,
Dorme da minha balada,
Quente nos braços da vida.


sexta-feira, 18 de abril de 2014

Pássaros (na janela)


Retinem da garganta alada trinos
Que pálpebras descerram, minhas, lentos.
Os sonhos dão lugar a pensamentos
Ainda vagos, quase desatinos.

Os sons continuados, paulatinos,
Remetem-me a remotos sentimentos,
E acoplam-se com ruflos violentos
Que cada vez mais fortes discrimino.

Decifro as sombras lépidas e estrépitas
Que aplaudem a abertura de outro dia
Cruzando a luz que adentra este aposento:

A natureza, em valsas sempre inéditas,
Desperta-me de um sonho sem poesia,
Enquanto noutro adentro, desatento.


sábado, 22 de março de 2014

Acalanto


Deita na cama e derrama,
Do que aprontaste, teu pranto.
Cantas teu tétrico drama;
Ouço meu doce acalanto.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Perigo nas entranhas

A Lua ainda inspira o lobo
Fossilizado na espinha do cão,
Como o vento refresca a crina
Do homem no alto do edifício.

Ondulações de barbantes excitam
Linces guardados nas unhas dos gatos.
Pterossauros nos esqueletos dos pombos
Arrogam-se ainda a posse dos céus.

O espírito da onça em caça
Pesa no acelerador, e embala.
A sede dos símios mergulha os pés
Nas águas do lago do parque.

Cuidado, cidadão humano!

Não deixe a vida de verdade
Contaminar o ecossistema da selva de pedra.


Não alimente os animais!

domingo, 29 de dezembro de 2013

Professor


Entre montes e vales,
Entre escombros e altares,
Entre estranhos e pares,
Labutar.

Entre luzes e sombras,
Entre essências e sobras,
Entre esboços de obras,
Lecionar.

Entre cobras e amigos,
Entre poços e abrigos,
Entre amparos e avisos,
Produzir.

Entre olhos e nervos,
Entre fases e pesos,
Entre alunos e ilesos,

Professar.