quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Penetra


Sinto-me fora da festa,
e, pior: mirando da fresta,
sinto que lambo com a testa
o que o olho faminto espreita.

A cada concurso que se ajeita,
a cada editora que rejeita,
a cada boa alma que me oferta
uma receita,
sinto-me menos poeta.

Não fiz pacto com capeta,
nem de Deus sou criatura dileta.
A tinta de que minha lira é feita
não é de sustância abjeta.
Meu verso tem um legítimo não-sei-quê,
mas crítica não me orienta,
só me espeta.
Quem não conhece, não lê;
quem me lê, não me interpreta;
quem interpreta, não conta mais:
poesia sem aval de gente abalizada
é motivo de risada;
tanto faz.
Diante de quem tem cartaz
no ecossistema da arte,
sou inseto que projeta
as próprias larvas,
abelha-operária fazendo sua parte:
um dia mando tudo às favas.

Sinto-me penetra,
absurdamente penetra,
no reino das palavras.

sábado, 23 de agosto de 2014

Pero Vaz


Pero Vaz,
infeliz português.
Longe jaz,
e o que ele fez
caminha.

Nos além-mares da Ásia,
seus últimos ais
desconheciam fado extenso.
Do tempo de seu vulto,
três nações
rezam um terço:

A Índia, paradeiro;
Portugal, endereço;
o Brasil, tempero.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Coroação


Formas de vida
Coram solos hibernais:
Botões de rosa.


quarta-feira, 30 de julho de 2014

Franco



Não posso trocar de intenções
Como quem troca de camisa.
O que meu olhar disse, dito está.
O que deixei escrito mantém a tinta.

Não é porque me defendo no recalque
Que abandonaria uma certeza construída.
Talvez você não saiba, mas eu sei
Que nem tudo que cala, imobiliza.

A esperança é um brinquedo triste,
Mas quando você aceita a brincadeira
Sento de um dos lados da gangorra
Esperando o impulso que me joga aos céus.

A aspiração carrega sempre um amargor,
Mas tudo o que você promete
Quando aparece em minha mente,
Parece brigadeiro de colher.

E em vez de resmungar investidas alheias,
Em vez de rechear de atenção outro objeto,
Deito na grama no meio da praça
Porque não posso escolher por você.

Mas nenhum gato venderei por lebre,
Meu lobo não vestirá pele de ovelha.
O que meu olhar disse, dito está,
Até as consequências derradeiras.






domingo, 22 de junho de 2014

No ar


É óbvio
que o vento
vai e vem.

É óbvio,
mas ninguém
vê.

É óbvio,
mas é lento
de entender.

É um óbvio
que é "além
de".


sexta-feira, 20 de junho de 2014

Selfie vintage


Ao fitar a foto antiga, no sofá, bebê,
Tão difícil é destecer a vida que me resta!
Porque ela sempre esteve inteira nesse rostinho de festa,
Nesse riso boca aberta, sem vergonha de viver.

Ao fitar essa verdade de brilho castanho,
Do tamanho do universo (que era berço e fralda),
Entendo que corri atrás da minha própria cauda
E que tive mais vitórias do que ganhos.

Ao fitar meu futuro nessa alegria infante,
Terna, travessa e ignorante de si,
Entendo o porquê de tudo que vivi,
E entendo o que me espera adiante:

Quando eu crescer e atingir o ponto mais maduro,
Quero ninar e proteger meu eu-bebê do escuro.




quinta-feira, 19 de junho de 2014

Pega-pega


Com riso disfarçado e cabecinha pensa
Você me ofereceu para escolher, de dois,
Apenas um: abraço ou beijo, e só depois
Ganhar de presente o de sua preferência.

Não sei por que aceitei, não tinha diferença.
Tão logo eu fiz a escolha, a sua se interpôs.
Talvez não fosse bom eu ser "feijão com arroz",
Talvez brincar de amor causasse impaciência.

Você correu de mim pelo quintal gigante
Porque escolhi um beijo em meu olhar entregue,
Porque tremi meus lábios como iniciante,
No máximo pudor que um puro amor consegue.

Não alcancei você porque faltaram pernas.
Só me sobrou o abraço de ilusões eternas.