domingo, 24 de fevereiro de 2013

Luva de Pelica


I

As intempéries levam teus bens
E tudo que mantiveste, prendeste, retiveste
Como se o destino dera.

Pessoas espertas levam tuas receitas
E produzem riquezas superiores
Às que forjaste de teus atributos.

Tuas opiniões despencam no outono
Sem completar a maturidade de um ano
Porque sempre há mentes mais argutas.

Tuas conquistas abarrotam o sótão,
Mas nenhuma delas paga as contas do feijão,
Porque quadros na parede não trabalham.

Teu próximo pode ter tantas qualidades
Quanto o próximo de teu próximo,
E as tuas são simplesmente as de outro próximo na conta.

Não te fies na vitória fácil
Porque a vitória sobre ti será tão fácil quanto,
E as forças do fado sempre querem revanche.

É, amigo. Essa é a História.
Essa é a condição de estar e não ter.
Essa é a ferida egótica que a vista recusa.

Há milhões de maneiras de mostrar
Cabalmente à consciência arrogante
O tamanho real do ser que és.

A experiência da humilhação não tarda,
Seja pela mão que apedreja e aponta,
Seja pela transitoriedade da condição humana,

Seja pela dança dos sucessos e fracassos,
Seja pelo descalibrado da balança moral,
Seja mesmo pelo acaso, ou pelo tédio, ou pela impossibilidade de assumir-se um a mais.


II

Tu talvez não saibas, mas a mais didática
E constrangedora operação de humilhação
Não vem da violência das palavras,

Não vem do temperamento autoritário,
Não vem da maledicência pura e simples,
Não vem da competição sem rédeas,

Não vem da sedução, da perspicácia,
Não vem do Mal, da dor, do soco, do azar,
Do ódio, do rancor, da crueldade:

Essa sanção devastadora e dura,
Essa sanção destruidora e inevitável
É aquela que te aplica a nobre alma,

Quando, sabendo do teu infinito de faltas
E de tua inapetência de saná-las,
Ainda oferta um peito aberto de perdão.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Na melodia



Considerando que a Literatura é a música das ideias,
Que a Poesia é a música das palavras,
Que as palavras são a música das letras,
Que as letras são a música do ler.

Considerando que o Cinema é música das cenas,
Que as cenas são música das formas,
Que as formas são música do espaço,
Que o espaço é música no caos.

Considerando que a paixão é a música do impulso,
Que a vontade é a música do instinto,
Que a bem-querença é a música do intuito,
Que o amor é a música do enfim.

Considerando que a natureza tem harmonia,
Que a humanidade tem compasso,
Que os indivíduos têm timbre
Que a civilidade tem tom

Considerando que a música das células é o corpo,
Que a música das buscas é o espírito,
Que a música dos sonhos é a alma,
E a música das músicas é o Todo.

Posso dizer, sem tormentas:
Toda minha vida tem sido
Dançar conforme a música,
Rosto colado no rosto do tempo.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Imo chamado sibilante


Falamos a mesma língua
Quando gaguejamos.

Temos toda razão
Simultaneamente.

Nosso elo é o duelo
Sincero de essências,

Nosso embate de serpentes
Pela toca diminuta.



Estaremos de acordo
Quando desacordados.

Venceremos nossos erros
Quando um de nós não os disser.

Pintados de tinta de batalha
Da seiva volúpia extraída,

Teremos pressa de atualizar
A presa e o predador.



Estalaremos, cada qual,
com o estigma devido.

Cada qual com o gosto alheio
Da pele em qualquer resultado.

E amanhã as cascas das feridas
Serão estilhaços de espelho.

Fomos feitos um para o outro.
E os dois de nós para o mesmo.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Ninharia


Você diz que seu poder é seu dinheiro,
Que é o primeiro a comprar tudo o que quiser,
A ponto de escolher entre o perfeito
E o qualquer.

Você diz que seu consumo não tem freio,
Mas, no fundo, o seu anseio lhe consome
A ponto de que, um dia, tendo tudo,
Você some.

Você diz que eu dou valor a ninharia
E que um dia vou pedir a sua ajuda.
A vida faz da brisa ventania.
Tudo muda.

Você diz que veste e come e bebe e ostenta
O melhor que a vida tem, mas é mentira.
O leite que eu tirei das minhas pedras
Ninguém tira.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Ida


Eu sou um andarilho
de um mundo diferente,
mas não estou sozinho,

cansei de ouvir falar
a voz condescendente
no caminho.

Saí de espessas matas,
descendo com suor
até os lagos brancos
que espelham a paisagem.

Subi colina reta,
passei num salto ao leito
vibrante em sons e vida
de um rio de rubras margens.

Ali foi que, primeiro,
ouvi a voz que guia
meus passos na certeza
da incrível travessia.

Eu sou um peregrino
de um mundo diferente,
mas não estou sozinho,

cansei de ouvir falar
a voz vibrante e meiga
no caminho.

De cima do penhasco,
eu vi um enorme vale
de súbito findando
na base das montanhas.

Rumei para adiante,
seguro e fascinado,
pequeno em frente ao belo
de proporções tamanhas.

A voz me veio clara:
perceba, sinta, e siga,
mas breve como a sorte,
que a estrada é sua amiga.

Eu sou um viajante
de um mundo diferente,
mas não estou sozinho,

cansei de ouvir a voz
pulsante, doce e quente
no caminho.

Pela planície lisa,
andei com confiança,
e até brinquei no seco
de um poço abandonado.

Mas logo à minha frente
topei com o desafio
de novo território
com mapa delicado.

Entrei, e a voz me disse:
- Esqueça tudo o mais.
- Os que foram tão longe
não voltarão iguais.

- Esqueça a segurança
da costumeira paz.
- Quem entra em meus domínios,
não voltará jamais.

Eu sou um viajante
de um mundo diferente
mas não estou sozinho,

eu ouço a voz ridente,
potente e sibilante
no seu ninho.

sábado, 27 de outubro de 2012

Tese tesão


Levantar alguma hipótese
caída.

Desatar os vários textos
de uma linha.

Vincular-se a uma corrente
e abrir as asas.

Cultivar a autoridade
e desfrutá-la.

domingo, 21 de outubro de 2012

Caprichos



Qualquer casa organizada pelo amor de minha mãe
Qualquer filme de cinema visto em boa companhia
Qualquer linha de poema recitada com verdade
Qualquer conversa sem rumo fluindo entre companheiros
Qualquer lágrima enxugada pelos lábios da escolhida
Qualquer momento vivido que permita mais saber
Qualquer erro cometido em nome da lealdade
Qualquer escolha impulsiva nas ditaduras do "certo"
Define precisamente meu requinte de viver