quarta-feira, 30 de julho de 2014

Franco



Não posso trocar de intenções
Como quem troca de camisa.
O que meu olhar disse, dito está.
O que deixei escrito mantém a tinta.

Não é porque me defendo no recalque
Que abandonaria uma certeza construída.
Talvez você não saiba, mas eu sei
Que nem tudo que cala, imobiliza.

A esperança é um brinquedo triste,
Mas quando você aceita a brincadeira
Sento de um dos lados da gangorra
Esperando o impulso que me joga aos céus.

A aspiração carrega sempre um amargor,
Mas tudo o que você promete
Quando aparece em minha mente,
Parece brigadeiro de colher.

E em vez de resmungar investidas alheias,
Em vez de rechear de atenção outro objeto,
Deito na grama no meio da praça
Porque não posso escolher por você.

Mas nenhum gato venderei por lebre,
Meu lobo não vestirá pele de ovelha.
O que meu olhar disse, dito está,
Até as consequências derradeiras.






domingo, 22 de junho de 2014

No ar


É óbvio
que o vento
vai e vem.

É óbvio,
mas ninguém
vê.

É óbvio,
mas é lento
de entender.

É um óbvio
que é "além
de".


sexta-feira, 20 de junho de 2014

Selfie vintage


Ao fitar a foto antiga, no sofá, bebê,
Tão difícil é destecer a vida que me resta!
Porque ela sempre esteve inteira nesse rostinho de festa,
Nesse riso boca aberta, sem vergonha de viver.

Ao fitar essa verdade de brilho castanho,
Do tamanho do universo (que era berço e fralda),
Entendo que corri atrás da minha própria cauda
E que tive mais vitórias do que ganhos.

Ao fitar meu futuro nessa alegria infante,
Terna, travessa e ignorante de si,
Entendo o porquê de tudo que vivi,
E entendo o que me espera adiante:

Quando eu crescer e atingir o ponto mais maduro,
Quero ninar e proteger meu eu-bebê do escuro.




quinta-feira, 19 de junho de 2014

Pega-pega


Com riso disfarçado e cabecinha pensa
Você me ofereceu para escolher, de dois,
Apenas um: abraço ou beijo, e só depois
Ganhar de presente o de sua preferência.

Não sei por que aceitei, não tinha diferença.
Tão logo eu fiz a escolha, a sua se interpôs.
Talvez não fosse bom eu ser "feijão com arroz",
Talvez brincar de amor causasse impaciência.

Você correu de mim pelo quintal gigante
Porque escolhi um beijo em meu olhar entregue,
Porque tremi meus lábios como iniciante,
No máximo pudor que um puro amor consegue.

Não alcancei você porque faltaram pernas.
Só me sobrou o abraço de ilusões eternas.


domingo, 4 de maio de 2014

A vida vence


O espírito de um homem sobrevive
Ao corpo, à morte, à desintegração.
Eu deixo um pouco deste coração
Em cada tempo e chão no qual estive.

Eu deixo os bens que amei (e nunca tive
Um bem maior em retribuição),
E deixo a história minha de lição
Com todos os meus erros, inclusive.

Não é preciso ser um detetive
Pra ver que, na extensão desta existência,
Nossa existência muda de extensão.

Não é preciso armar-se de tal crença,
Pra ver que a vida vence, e, queira ou não,
O espírito de um homem sobrevive.


terça-feira, 29 de abril de 2014

Abstração


Radiofrequências ativas
Fazem estragos de luz e cor
No tubo do televisor.

As traças atravessam a estante
Usando ativamente meus livros
(saciedade dos insetos vivos).

Nos armários e gavetas da cozinha
Um brilho metálico de inércia impecável
Caminha.

Bits e bytes esbatem-se na tela,
Como flores colorindo a primavera.
No monitor, a rede é teia,
Onde a mosca do mouse passeia,
Sem cuidado e sem aviso.

Enquanto isso,
Sentado no sofá,

Eu briso.

domingo, 20 de abril de 2014

No colo


Quente no berço dos braços
Que é o melhor leito da vida,
Dorme, bebê, no compasso
Desta canção distendida.

Dorme esperando um sibilo
Suavemente presente,
Como um riacho tranquilo
Numa savana sem gente.

Dorme esperando um zunido
Suavemente esquisito,
Como um cochicho emitido
Pelo ir e vir de um mosquito.

Dorme esperando uma nota
Suavemente entoada,
Como pisada de bota
De quem vem da madrugada.

Dorme esperando mais nada,
Suavemente risonho.
Dorme da minha balada,
Que eu dormirei do teu sonho.

Dorme, bebê, sem cautela,
Dorme do meu acalanto,
Como uma ingênua donzela
Sob o condão de um encanto.

Dorme que a noite é chegada,
Dorme que o sonho é partida,
Dorme da minha balada,
Quente nos braços da vida.