sábado, 28 de março de 2015

Retorno




Às vezes as pessoas dizem:
"Queria retornar no tempo
A certo ponto do passado
A fim de corrigir meu erro".

Ledo engano: não é preciso.
Deus sabe nossas demandas,
E traz o passado de volta,
Dizendo: "Tente de novo".

Ele recria circunstâncias
Ponto por ponto vividas
Para entendermos os erros
Como rascunhos de escolhas.

Quando menos percebemos,
Estamos nos mesmos lugares,
Com as mesmas pedras nas mãos,
Só que agora mais humanos,

Em fausto e eterno retorno,
Até que nos sumam dos sonhos
As marcas sombrias e incômodas
De que errávamos ali.

sexta-feira, 27 de março de 2015

Herança



Meu nome é pronunciado
sempre que palavras minhas
- organizadas por meu fígado
e arremessadas entre meus dentes -
resistem na superfície
das ondas de informação.

Meu nome permanecerá
quando o sangue estancar nas veias
e o que me define for morar
no lado escuro da Lua.

A você não deixarei
nem nome nem sangue de meu,
nem cantilenas alquebradas
que em nada me lembrarão.

O melhor do meu patrimônio
- seu, desde sempre e já -
é o livre e intemporal acesso,
palavra por palavra e além,
às clareiras da selva sem mapa
que julgam formar meu jardim.

sábado, 14 de março de 2015

Você é Bach?



Acaso você é o autor
Da Missa em si menor?

Acaso você que escreveu
Sobre os amores de Romeu?

Vem de seu pincel a divisa
Dos traços da Mona Lisa?

Sai de seu panteão algo à altura
Do Cavaleiro da Triste Figura?

Algo de seu ficou inscrito
Nalguma pirâmide do Egito?

Se a sua resposta é sim,
Minha busca chegou ao fim.

Se a resposta é negativa,
Deixe-me viver. E viva!

domingo, 8 de março de 2015

Sincronia das mônadas





Quando Deus permitiu que eu sondasse,
do ínfimo ao descomunal,
todos os setores da existência,
conhecesse cada combinação química,
cada partícula e cada conjunto,
que forma riqueza sólida,
orgânica, viva, inteligente, sistêmica;
quando Deus permitiu que acessasse
todas as almas havidas,
todas as almas futuras,
cada um dos corpos que as abrigasse,
cada uma das famílias que as conhecesse,
cada laço de relação que produzissem;
quando Deus permitiu que fruísse
de todo o conhecimento e toda a experiência,
de todo olhar e toda ação de sentido de cada ser
em sua construção limitada entre nascença e morte;
quando Deus colocou à minha disposição
todas as verdades e belezas
de todos os tempos, passados ou futuros,
de todos os planetas e galáxias do universo,
e mais de todos os universos possíveis
e, se não fosse já suficiente,
de todos os que se possam imaginar
por um espírito supostamente sem freios,
ou quaisquer outros que se pudessem buscar
em pensamentos e informações dentro ou fora do existente;
quando Deus assim o fez e sua voz
bradou, tonante: "- Faz tua escolha, rapaz!",
escolhi só três coisas:



ser dividido contigo na mitose do caldo primordial;
estar neste momento, neste lugar e deste jeito beijando teus lábios;
fugir nalgum dia do futuro como raio de luz
formado de minha e tua energia
pelos confins do infinito.



quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Família


Vi quatro homens ocupando
dois velhos colchões sobre a grama
e a terra do viaduto,
barranco do Minhocão.

Dentro de cada um deles,
havia um coração.

Dentro de cada coração
havia três companheiros
trocando bitucas molhadas
e algum café muito ralo.

Vi uma moça perfeita,
dentes e unhas afiados,
destoando de pai e mãe,
namorado, irmão e cachorro.

Dentro de sua mente
havia pai e mãe, namorado,
irmão, cachorro, inimiga,
chefe, shopping, cartão de crédito,
programa de TV e celular de ponta,
cada qual em sua posição,
ou mais ou menos isso.

Em seu coração,
não havia ninguém.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Superlua




A Lua gigantesca na janela.
Um livro aberto em versos eloquentes.
Um cobertor e um chocolate quente.
O silêncio mais sugere que flagela.

Estouro de pipoca na panela.
Vontade de levar pipoca aos dentes.
Resquícios de parceiros hoje ausentes.
Vontade de limpá-los na flanela.

Paredes condizentes com desejos
Tamanhos, incabíveis no organismo.
Telhados frágeis, prestes a explodir.

A luz da Lua mostra ao ser que ri
O amor, escancarando seu cinismo...
...e eu olho da janela e nada vejo.


segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Suor


Todos os dias,
imagens anunciam
com pompa e estardalhaço
que certas pessoas vencem
sem prece, sem cansaço
e com sorriso na face
falsos desafios
e falsas batalhas;
e todos os dias,
no olhar de outras pessoas,
aparece um brilho baço
por debaixo do disfarce,
exclusivo de quem já perdeu
mais que pedaço
nos fios de muitas navalhas.

Todos os dias
penso nessas conquistas
sem suor das axilas.
Para que fazer parte de listas
quando é medíocre produzi-las?
Por que manchetes de revista
dão tanta repercussão
a pessoas que ignoram
como se ganha o pão na pista?
Tanta contradição:
olhos de pessoas nobres choram
por olhos de quem jamais abriria mão
de seu pouco merecido e muito pão!

Mas todos os dias
consolo-me ao pensar, sentado à mesa,
que faço tudo o que posso
para abastecer a nossa vida da beleza
de um pão nosso.