quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Delirismo



Não sei se você sabe.

Liberdade era o que pedia o bebê no colo da garota.
Liberdade era o que pedia o cão na coleira tensa.
Liberdade era o que pedia o panfleto mergulhado no bueiro.
Liberdade era o que pedia o estudante machucado pela bomba.

O futuro de alguma forma aconteceu
enquanto você lamentava que as canções já não prestam,
a inteligência não orna, o brilhantismo não vale,
enquanto você dizia que tudo-tudo já foi dito,
que é preciso encontrar um sentido
digno de investir seu tempo de vida,
tempo, aliás, adquirido com as sobras
da renda de quem, o tempo todo,
sambou no topo da pirâmide.

Tinha um coitado drenando intestinos miseráveis
na porta de um restaurante de madrugada
enquanto você demonstrava a realidade (comprovada) do mundo
para uma plateia de protegidos.
Tinha um monte de lixo com crianças abandonadas
disputando o último açúcar do vidrinho da geleia
enquanto você pregava com eloquência libertária
seu direito (especificamente o seu) de fazer o que der na telha.

Não sei se você sabe.

A vida não tem cardápio para apetite blasé.
Seu tédio é pago com a escravidão de alguém.
Nalgum outro centro de universo
distinto do que conspira a seu favor,
cadáveres adiados pedem todo dia
literatura, mesmo morta;
poesia, mesmo insatisfatória;
sanidade, mesmo questionável;
amparo, mesmo envergonhado:
para o futuro do bebê,
para o pescoço do cachorro,
para a voz perdida no espaço,
para as feridas de transgressores que dançaram
como a empregada na piscina da patroa.

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