terça-feira, 27 de março de 2012

Quando a Palavra me erra


olhos óculos aros rodas câmeras lentes faróis são olhos
olhos tijelas copos cinzeiros bolas boliches bocas de fogão
bolinhas de gude de sabão aros de fogo rodamoinhos na mata cataventos e birutas
olhos bocas narizes orifícios de vidro de plástico de carne eletrônicos
por toda a parte olhos são olhos e coisas que nem redondas são nem parecem olhos
também me observam que se vigia assim o mundo protegido dos erros dos desajustados

olhos medem meu corpo,
meus passos, olhos medem,
medem meu brilho, os olhos,
olhos medem minha bunda,
medem, os olhos, meu peito,
medem a saturação
das cores de meu cabelo,
medem o corte das unhas,
o comprimento da barba,
a visibilidade da nódoa
no corte da gola gasta,
a proporção ombro-pernas,
a proporção fala-riso,
a proporção entre o meneio
positivo da cabeça
e a extensão temporal
da sisudez presunçosa
da fala do poderoso,
olhos medem pessoas
como pessoas não fossem,
realismo e psicose,
só não medindo o que some
dentro de um campo invisível,
apartado do espetáculo,
pois a garganta tem cofre,
compartimento, baú
para guardar a Palavra.
Olhos não medem Palavra.
Deixam, se perdem, tonteiam.
Roupas que são de Palavra
vestem o rei que está nu.
Cores que são de Palavra
perdem em definição.
Formas que são de Palavra
vazam contornos do olhar.
Só quando visto Palavras
não sou visto pelos olhos.
Quando as Palavras me erram,
olhos não medem de mim.

Quando a Palavra me erra
meus cabelos não têm fios,
os fios não têm comprimento,
o comprimento não tem cor.
Quando a Palavra me erra,
minha íris não tem tom,
minha pele não tem marca
de fenótipo, ou chicote.
Quando a Palavra me erra
meus braços não têm músculos,
minhas pernas não têm tônus,
minha barriga é sem riscos,
minhas feridas se fecham.
Quando a Palavra me erra
meus passos são sobre as águas
de um rio que já não tem águas,
nem curso, nem consistência,
e que me carrega na fúria
do indefinido sem-rumo.
Quando a Palavra me erra,
minha foto é impossível,
meu retrato é mentiroso,
sou simples caricatura,
em mínimos traços, em linhas,
boneco-palito sem púbis
riscado por lápis sem ponta
no verso da folha amassada
no Ateliê do Criador.
Quando a Palavra me erra,
na autoridade de sombra,
olhos se fazem meus olhos,
sou como quero me ver.

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