segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Teatrinho


Meu e teu teatro,
De medos, de sombras.
No palco,
Só formas que trombam.
Primeiro e último ato,
Atores em desacordo.
Até se consegue aplauso,
Mas morno.

Meu e teu teatro,
De faltas, de poses,
Sem falas,
Só bocas e pontos.
Tudo soa decorado
Como um berro sem assomo
No ânimo frouxo e barato
Do sono.

Meu e teu teatro,
Sem solo e sem fogo.
Lançamento de dois dados
No acaso das regras do jogo.
Meu e teu teatro,
Agora e de novo
O velho papel que nos cabe:

De bobos.

domingo, 16 de outubro de 2016

Libação


A coragem que eu tinha
De largar tudo pra trás
E assumir o monastério do nada
Numa montanha desconhecida
Era capaz de encher um copo.

Enquanto professor
Nunca servi desse vinho.

Já enquanto cidadão,
Sonhei embebedar de poesia
Almas em crescimento,
Para que invadissem meu lar
Sem remorso ou relutância,
Saqueassem minha adega,
E partissem de minha vista para o definitivo.

Eu comemoraria cada estilhaço dos tóneis
Como ressurreição.

domingo, 11 de setembro de 2016

Pilar

Dispenso que me reconheçam
Naquilo em que me reconheço.
Dispenso fazer de posições troféus
De uma gincana de vaidades.
Dispenso ganhos de preocupação,
Dispenso ter mais do que controlo.
Pouco me importam aplausos inflamados
De quem não me viu.
Consumo pouco, vivo muito, curto o breve,
Estou onde estou por inteiro
E o tempo sabe disso.

A propósito: dispenso o controle do tempo.
O que posso reter em minhas mãos
Já me escapou.
O que posso perder comigo no dia de hoje
Levo com toda a gratidão.
Não tenho do que reclamar.
Se o destino queria me presentear,
Já o fez sem saber,
E não com sensações impermanentes de vitória,
Nem com talentos impermeáveis,
Nem com acessos ao que não solicitei.

Não importa quantos convenci com palavras,
Quantos demovi de enrascadas,
Quantos recuperei para a ética.
Não importa quanto acumulei em elogios,
Quanto lucrei com sacadas,
Quanto vingaram minhas ideias,
Livres de mim, afinal.
Não importam quantias, adereços, bravatas,
Elogios, silenciamentos, submissões,
Conquistas por presença intimidadora,
Sinais de aprovação e acatamento.

Nada disso realmente importa
Quando percebo que abres
Esse sorriso enorme ao me ver.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Delirismo



Não sei se você sabe.

Liberdade era o que pedia o bebê no colo da garota.
Liberdade era o que pedia o cão na coleira tensa.
Liberdade era o que pedia o panfleto mergulhado no bueiro.
Liberdade era o que pedia o estudante machucado pela bomba.

O futuro de alguma forma aconteceu
enquanto você lamentava que as canções já não prestam,
a inteligência não orna, o brilhantismo não vale,
enquanto você dizia que tudo-tudo já foi dito,
que é preciso encontrar um sentido
digno de investir seu tempo de vida,
tempo, aliás, adquirido com as sobras
da renda de quem, o tempo todo,
sambou no topo da pirâmide.

Tinha um coitado drenando intestinos miseráveis
na porta de um restaurante de madrugada
enquanto você demonstrava a realidade (comprovada) do mundo
para uma plateia de protegidos.
Tinha um monte de lixo com crianças abandonadas
disputando o último açúcar do vidrinho da geleia
enquanto você pregava com eloquência libertária
seu direito (especificamente o seu) de fazer o que der na telha.

Não sei se você sabe.

A vida não tem cardápio para apetite blasé.
Seu tédio é pago com a escravidão de alguém.
Nalgum outro centro de universo
distinto do que conspira a seu favor,
cadáveres adiados pedem todo dia
literatura, mesmo morta;
poesia, mesmo insatisfatória;
sanidade, mesmo questionável;
amparo, mesmo envergonhado:
para o futuro do bebê,
para o pescoço do cachorro,
para a voz perdida no espaço,
para as feridas de transgressores que dançaram
como a empregada na piscina da patroa.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Enfrentamento


Se você optou por caminhos perigosos e violentos,
Desrespeitou convenções, quebrou as grades da jaula,
Expôs a dor de querer mais nas janelas da alma,
Avançou contra o óbvio e sublevou seu próprio tempo;

Se você escolheu honradez e renegou honrarias,
Quis alegrias de outrem mais que as vaidades de si mesmo,
Leu a súplica dos covardes na falsidade de seu pretexto,
Ousou estampar a verdade na testa por lema de vida;

Você, como eu, teve de pisar armadilhas
Que morderam seus pés de Mercúrio e suas asas de cera,
E que serviram muitas vezes como aviso de fronteira
Desse mundo montado por gente mesquinha.

Você, como eu, perdeu a conta das pedradas,
Mas nunca se perdeu no entendimento das senhas.
E se o rio da maioria quer arrancar nossas cabeças,
Cremos que ainda é possível pairar sobre as águas.

Vamos pelo contrafluxo, cavar a secura dos poços.
Vamos semear o bom, que é também o indigesto.
Vamos aceitar a glória de sermos o resto do resto.
Vamos esperar por Cristo no Vale dos Leprosos.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

No meu tempo

No meu tempo não havia essa corrupção desenfreada
De valores financeiros e de caráter,
Porque viver era tudo o que cada um tinha,
E todos respeitavam a oportunidade.

No meu tempo também não havia 
Esses largados sem rumo nas calçadas,
Porque o Estado e a sociedade e as organizações
Tinham por meta distribuir algum amparo.

No meu tempo não havia vigilância,
Porque as leis de convivência soíam serem leis,
E o trânsito, os concursos, as ocupações, as causas
Fluíam, encaminhados sem histerias e processos.

No meu tempo crianças podiam ser adotadas
Por casais de qualquer orientação afetiva,
E os corpos das pessoas eram templos
Que abrigavam apenas cultores do respeito.

No meu tempo pobres e ricos andavam de avião
E o avião só tinha primeira classe,
E as baladas só tinham gente bonita
De todas as cores e credos e modas e salários.

No meu tempo, não havia estrangeiros e migrantes,
Porque o povo sabia que a história dos povos
Dependia da comunhão de culturas distintas,
E as fronteiras do país eram pro forma.

No meu tempo as diferenças de poder
Diluíam-se na fala pública negociada,
Mais ampla que a democracia majoritária
Porque apta a integrar as minorias opacas.

No meu tempo Deus não fazia distinção
Entre fiéis de uma ou outra vertente.
Religiosos falavam de Deus pelos olhos
E pela língua delicada de mãos que obravam o bem.

No meu tempo todos sabiam primeiros socorros e Libras,
Todos davam de seu tempo para causas belas,
Todos cozinhavam para refugiados e carentes,
A educação era responsabilidade geral.

No meu tempo não havia quem não tivesse
Ao menos em algum momento da jornada
Experimentado a hospitalidade do semelhante
Para conhecer as receitas da integração.

É por isso que bato no peito com muito orgulho,
E meu olhar, quando medito, brilha de emoção,
Pois nunca haverá um tempo como meu tempo:
O tempo que eu vivo para iniciar.

sábado, 28 de março de 2015

Retorno




Às vezes as pessoas dizem:
"Queria retornar no tempo
A certo ponto do passado
A fim de corrigir meu erro".

Ledo engano: não é preciso.
Deus sabe nossas demandas,
E traz o passado de volta,
Dizendo: "Tente de novo".

Ele recria circunstâncias
Ponto por ponto vividas
Para entendermos os erros
Como rascunhos de escolhas.

Quando menos percebemos,
Estamos nos mesmos lugares,
Com as mesmas pedras nas mãos,
Só que agora mais humanos,

Em fausto e eterno retorno,
Até que nos sumam dos sonhos
As marcas sombrias e incômodas
De que errávamos ali.