domingo, 29 de dezembro de 2013

Professor


Entre montes e vales,
Entre escombros e altares,
Entre estranhos e pares,
Labutar.

Entre luzes e sombras,
Entre essências e sobras,
Entre esboços de obras,
Lecionar.

Entre cobras e amigos,
Entre poços e abrigos,
Entre amparos e avisos,
Produzir.

Entre olhos e nervos,
Entre fases e pesos,
Entre alunos e ilesos,

Professar.


sábado, 28 de dezembro de 2013

Soneto da rede social


Aguardo a tua última postagem
Postagens explorando, aleatórias.
Aguardo o desenlace dessa história
Como um tigre faminto e sem coragem.

Quem dera uma indireta de passagem

Moesse as esperanças irrisórias,
Trazendo-me saudades e memórias
Maiores que o atrativo das bobagens.

No fundo, satisfaço-me em imagens

Que servem de alimento e fantasia
Às fábulas que a rede me permite.

E enquanto minha mente está vazia,

A foto, o riso, a voz e outras miragens
Aguardo em meu estúpido apetite.


segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Jovem tagarela


Era difícil falar com heróis e fadas
E pessoas menos bonitas que desenhadas.
Era difícil falar com portadores de certezas
E com as bocas cheias do prazer da mesa.
Era difícil falar com o vocabulário que eu tinha
E com sentenças-princípios de gente cretina.

A "democracia" do meu entorno era o não,
Fabricado nos profundos do pulmão.
A "inclusão" ao meu redor era o grito mais alto
Que sobrepunha quaisquer conclusões a quaisquer fatos.
A voz subia escadas de agonia.
O conteúdo do dizer era o próprio direito
De dizer o que dizia.

Eu não queria ser aceito por ninguém naquele momento.
Eu queria tirar as borboletas de dentro.
Queria respostas a perguntas sem dúvidas,
Talvez ser nauta de águas turvas.
Falava às paredes e aos cães que me lambiam
Numa poesia a que faltavam adereços de poesia,
Voz de pirralho enlevado com a guitarra nova,
De criança embirrando: criança, uma ova!,
De um certo alguém em certo ritual só seu,
De presumido gigante em pele de pigmeu,
De porta-voz de amigos imaginários,
Garganta sem escopo em seus disparos.

Falava a quem queria ouvir as canções do momento,
Mas de que valeria, Cássia, lançar palavras ao vento
Se o deus do vento tivesse cera nos ouvidos,
E as sereias não sorvessem meus gemidos?

Era difícil falar de assunto interessante
Sem ouvidos que sacassem o adiante
Além do ali diante.
Difícil almejar tesouros  não cobiçados
Sem lidar com estranhamentos de sensos solidificados.
Difícil perceber que eu falava sozinho
E que esse prazer era menos que carinho
E muito mais que poder.


domingo, 8 de dezembro de 2013

Bolinhos de chuva


Conte sua história
Antes que ninguém mais pergunte.

Declare descaradamente seu amor
Enquanto o impulso tem palavras.

Ria de si mesmo e siga em frente
Enquanto seus pés têm saúde.

Se há uma pessoa linda,
Convide-a para dançar.

Se você se sente perfeito,
Roube um brigadeiro da mesa.


Cante aquela canção
Cuja letra você nunca soube.

Atinja um alvo
E comemore comendo um bombom.

Dê presentes todo dia.
Faça carinho nos seus bichinhos.

Beije os olhos de uma criança
E deixe ela sair correndo.

Grite palavrões ridículos
E as raivas divertirão os amigos.


Bata palmas para o sorriso
E para o sol que desabrocha.

Olhe as diferenças do céu
Enquanto nem todas brilham em cinza.

Diga o que pensa
Para saber com clareza o que sente.

Abrace uma árvore
Antes que seja tarde.

Abrace seu mundo
Enquanto chamá-lo de seu.


sábado, 7 de dezembro de 2013

Decrepitude


Bate o vento na janela,
Bate o vento no jardim,
Treme a chama desta vela,
Como o tempo treme em mim.

Bate o vento como os dias
Batem forte na vaidade.
Treme a vida, enfrenesia,
Contra as pústulas da idade.

Bate o vento desfolhante
No jardim de quem foi gente.
Corta o flor do meu semblante,
Deixa vácuo intermitente.

Bate o vento na ferida,
Leva o dente-de-leão.
Leva o leve desta vida
Deixa a dor da escuridão.


quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Canção fremente


Queria que os arrepios da pele pudessem tanger as cordas de um violão.

Queria que o tremor das pálpebras pudesse pulsar sobre os canos de um xilofone.

Queria que os espasmos dos músculos pudessem impulsionar o sopro dos metais da orquestra.

Queria que as palpitações do peito pudessem chocar pratos, socar bumbos, soprar tubas profundas.

Maestro do meu amor,
partitura do meu prazer,
intérprete da minha febre,
queria gemer tão alto
que a melodia do tato,
do pelo, do corpo, da pélvis,
derramasse do copo da arte
para a mesa do banquete,
talheres cruzados nos pratos,

restos de mel e exaustão.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Pela união


De que adianta estar munido
De um coração tão miúdo,
Danado de imundo e de mudo
Desnudo num mundo cindido?


Mude-o, querido. Isso é tudo.

domingo, 10 de novembro de 2013

Diálogro


A grande maioria das pessoas,
Nas situações de conversa,
Não sabe absolutamente nada
Sobre aquilo de que fala.

Inseguras em relação à imagem
Que podem passar, de superficiais,
As pessoas dizem o que não sabem
Com a mais profunda convicção.

E a grande maioria das pessoas
Que se cala em situação de conversa
Tende a concordar com a mais convicta
Das pessoas que falam ali.

As pessoas concordarão de boa.
Dá mais trabalho discordar,
Não estão prestando atenção,
Ou também nada sabem daquele assunto.

Portanto, não se incomode se ninguém compreende
O que você traz de interessante,
Ou se, diante de certos caras de pau,
Você parece sem brilho.

A grande maioria das pessoas
Está programada para não ouvir
Nem mesmo aquilo que já sabe
Ou que deveria saber,

E a desenvoltura imensa
De seus intermináveis discursos
Deve ser medo de ouvir um diferente
Dentro de si.


sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Passa, gente



Nessa vida passageira,
Passa gente por demais.
Passa gente de primeira,
Passa gente patamaz.

Gente nobre e verdadeira,
Que Deus gentilmente faz.
Gente que, se der bobeira,
Passa a gente para trás.

Gente boa-praça, arteira,
Trata os outros como iguais.
Gente crassa, fala asneira,
Passa à frente coisas más.

Gente esparsa, brasileira,
Fabricando seus sinais.
Gente grassa, bagaceira,
Passa ingente e vai salaz.

Gente massa, brincadeira,
Passa e sente, volta e faz.
Gente falsa, brigadeira,
Passa e mente, linguaraz.

Nessa farsa prazenteira
De chalaças geniais,
Gente passa a vida inteira.
Passe sempre. Passe mais.


A bem do condenado


Meus milhões de defeitos justificam
Consequências que caem sobre mim.
Cada vez que transgrido um combinado
Punições põem-me à parte do ruim.

Não reclamo das penas imputadas,
Não reclamo de nada, sei quem sou.
Só que, atrás dos defeitos do caráter,
Há uma face que nunca se mostrou.

Se essa face mirasse o horizonte
Com seus olhos profundos, comovidos,
Os carrascos que araram minha carne
Lembrariam com dó dos meus gemidos,

E as pessoas que um dia me julgaram
Pelas leis rigorosas de seus reinos,
Lembrariam que Deus tem leis maiores
E que enxerga as verdades que não vemos,

E eu teria sanções na dose exata
De fazer-me melhor para o outro dia,
De aprender pelo aporte de meus erros,
De aceitar minha própria companhia.



Pé na jaca


Quando a noite te questiona
Se as paredes de teu quarto
Sabem que tu és cafona,

Que essa hora é sempre um parto,
Que essa fleuma é fingimento,
Que não tens poder de fato,

Curte a vida cem por cento,
Banca o teu deliramento,
Tira o pé do barco errado,

Manda logo esse torpedo,
E se for atrevimento,
Pensa nisso amanhã cedo.

Cada qual no seu quadrado...


Cada qual com seu segredo...


terça-feira, 15 de outubro de 2013

Fogueira


Crepitam fantasmas
Entre gravetos e brasas:

O fogo tem asas.


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

O bom combate


Se tive o mérito do empate
com quem não sabe da disputa,
foi por treinar para o combate
só minha parte biruta.


Dia de descanso


Da quitinete identifico
gritos e britadeiras,
murmúrios e rangidos
ao longe e ao fundo.

É silêncio na cidade.

Seu


Não passe morna por mim. 
Sorva-me sem parcimônia.
Se a lágrima louva, vale a pena:
adote meu lema,
assuma meu leme,

leia-me.

domingo, 6 de outubro de 2013

Lugar exato


Escrever é uma forma
de colocar ordem nas ideias,
dizem meus manuais de redação.

Dançar deve ser uma forma
de colocar ordem nos sentidos.
Cantar deve ser uma forma
de colocar ordem nas emoções.
Isso não é dito
pelos manuais dessas artes.

Viver deve ser uma forma de desordem
complementar ao canto, à dança, à escrita,
servindo de matéria bruta e substrato
à elucidação do sentido.
No momento em que rodo, entoo, aperto a caneta,
muitas coisas simplesmente são.
Por isso, os manuais de viver
não nos dispensam das alegrias.

Amar, por sua vez,
deve ser uma forma de cantar, dançar, escrever,
assoviar e chupar cana ao mesmo tempo.
O amor pega a vida e a coloca em seu lugar exato.
Todas as coisas passam a ter sentido.
Tudo fica afinado,
todo movimento é leve,
toda linha torta escreve certo.
Ideias, sentidos e emoções parecem costurados sem remendos
no tecido da existência atual, pregressa, posterior.

O único problema insolúvel de se amar
e preencher sua vida e sua arte com o amor
é saber depois o que fazer
com os manuais.

sábado, 5 de outubro de 2013

Macho


Está difícil achar um homem
Com o peso justo do macho
Cheiro e força de varão
Maturidade de sábio

Está difícil achar um homem
Macho, mas não machão
Seco perante a frescura
Justo perante a razão

Está difícil achar um homem
Com o lado belo do macho
Reto, direto e concreto
Com hesitações mil por baixo

Está difícil achar um homem
Macho, mas não limitado
Que aceite seu lado menino
Quando se deita ao meu lado

Está difícil achar um homem
Bom nos deveres do macho,
Fraldas trocando, e lavando
Roupas sujas de relaxo

Está difícil achar um homem
Com o jeito próprio do macho
Meigo no toque e no beijo,
Mau na pegada dos braços

Está difícil achar um homem
Macho, sem ser escroto
Que goste de fato de mim
E não apenas do meu corpo

Está difícil achar um homem
Puro nas dores de macho,
Pronto a aprender com conselhos
A ouvir e filtrar meus escrachos

Está difícil achar um homem
Hétero na orientação,
Macho na língua do vulgo,
Igual na humana condição.

Único caminho


Há duas formas de entender a história,
Há duas formas de ajustar a mente.
Ou você pode acreditar nos fados,
Acreditar que tudo está no trilho,
Ou você pode debandar de lado,
E acreditar que o mundo pede auxílio,
E alimentar-se em fé renovatória:
Das duas, uma: ou marionete, ou gente.

Se você quer do igual sempre a vitória,
De um ego cego que só segue em frente,
Seu mundo fica pré-determinado,
Sem horizonte, ascende um sol sem brilho.
Mas se do idílio está desenganado,
Se você crê que o ego é um empecilho,
Você se afasta da verve ilusória.
Destrói disfarces imediatamente.

Das duas formas desse estar no mundo,
Entre a quimera e o esforço de ser pleno,
Apenas uma vale o próprio custo:
A escolha é decisão definitiva.
Quem semear com seu querer profundo,
Quem mantiver seu coração sereno,
Verá passados e amanhãs sem susto:
Florescerá da própria iniciativa.

Existe humanidade além da dor,
Além do engano e além da solidão,
Quando o alienado aprende a ser ator.
A escolha é sempre mais que um sim ou não.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Até aprender


Tanta coisa já escrevi
Sobre momentos nos quais
Não sabia como agir,

Que achei que, passados os anos,

Lendo tudo o que escrevera,
Melhoraria meus planos.

Mas não foi dessa maneira:

Escrevo de novo esta vez
Como escrevesse a primeira,

Sempre perdido no mapa,

Sempre impulsivo e poeta,
Sempre dando a cara a tapa.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Bonito


Se eu pego as coisas em que acredito
E somo às coisas em que não acredito,
Empata.

Mas nem por isso eu sussurro. Eu grito.
No muro da vergonha estava escrito:

"É a dúvida que mata".

Os cães ladram;

Segue em frente a passeata.

Amparador


Não vou tratar com nojo e resistência
O monstro que se move à minha frente.
Eu sei que existe um modo diferente
De compreender o fel de sua essência.

Não vou deixar que o preconceito vença
E o mal da maioria me frequente.
Eu quero o entendimento do doente
Bem mais que o apontamento da doença.

E se o doente agride meus sentidos,
E agride a mim, porque, despreparado,
Não sei lidar com óbices reais,

Abraço essa agressão como um pedido,
Entrego o ouro meu todo ao bandido,

Desarmo o monstro, e não há monstro mais!

sábado, 6 de julho de 2013

Vacinado


Ouvindo música de verdade,
Pensando no que tem substância,
Sustento na mente pujança
De antídotos contra saudade.

Não permito ao medo que me invade
Encontrar parceiro para dança:
Fio-me na noite, que é criança;
Chamo de presente a liberdade.

E quando o impulso negado volta,
Abalando juras e certezas,
E a mão da mão da firmeza solta,
Invisto em outras formas de beleza:

Paixão se combate com paixão,
Que pode ser de carne e osso ou não.

Galardão


O militar tem o exército.
E todo bem treinado exército
Tem como prêmio: mais exercício.

O mentiroso tem o mérito
E toda líquida unanimidade de seu mérito
Tem como prêmio: meretrício.

O homem normal tem o veto.
E todo autoflagelante veto
Tem como prêmio um vício.

Arrebol


Na tarde de um dia estranho,
Quando alguém lembra de mim,
Não vem nenhum sinal.

E eu lembro de dada pessoa,
Ex-banho de politonia
Nas tardes de um dia normal.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Aviso


Na longa estrada da vida,
daquilo que atropela
ninguém nem anota a placa.

O destino é implacável
com quem empaca.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Toque

Falta só mais um pouquinho
pra sermos mais do que nada.

Uma pitada de sal
e temos uma salada.

Falta aceitar meu carinho
entre o vinho e a risada.

Uma pitada de amor
e temos uma morada.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Filósofo amante


Gosto de dar uns toques
profundos.

Tornar-me Pessoa


Passei boa parte da vida
Tentando mostrar a mim mesmo
E aos homens com panca de sérios
Que eu nunca seria ridículo.

Mas veio Fernando Pessoa
E a escolha que fiz me salvou:
Não ser rol de conveniências ,

Ser sempre uma carta de amor.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Dois muros


Um muro do meu tamanho
Qualquer cabeça ultrapassa,
E a vista dos verdes prados
Para quaisquer interessados,
Vem livre, distante e esparsa.

Um muro do teu tamanho
Ninguém não pode transpor.
Só quem passou do portão
Por tua estrita nução
Viu prados prenhes de cor.

sábado, 11 de maio de 2013

Alfa e ômega



A primeiríssima das vezes
Em que houve Arte no Cosmos
Foi quando o Senhor, depois de criar
Tudo o que era necessário,
Criou ainda outras coisas,
Pelo prazer do próprio ato,
E viu Deus que eram belas,
E assim fez-se o raiar do dia.

A derradeira das vezes
Em que houve Arte no Cosmos
Foi quando o último vivente,
Na última galáxia da lista,
Estendeu os membros sedentos,
Suplicando não água nem luz,
Mas uma ideia sem nódoas,
para expirar sem sofrer.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Heráclito



Tudo que existe  retornará ao barro.
Tudo que existe retornará ao pó.
Tudo que existe se dissolve no ar.
Tudo que existe se corrompe.
Tudo que existe definha.
Tudo que existe queda.
Tudo tem um "até".

Apenas Deus sempre é perfeito,
Porque Deus não existe:

Deus é.



Não há nada que não sofra ação do tempo.
Não há nada que não sofra ação do outro.
Não há nada que não seja transitório.
Não há nada que não se transforme.
Não há nada que não pereça.
Não há nada que não mude.
Não há nada que não vá.

Apenas em Deus nada não muda,
Porque Deus não consiste:

Deus há.



Tudo e nada retornarão do tempo.
Tudo e nada sofrerão do pó.
Tudo e nada se corrompem.
Tudo e nada se transformam.
Tudo e nada definham.
Tudo e nada mudam, pois
Tudo e nada são.

Apenas Deus não é nem tudo nem nada,
Porque a existência pode ser delimitada,

Deus, não.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Subgestão



Quando as pessoas têm vergonha do que são,
o nome dado à máscara da força na gestão
é sugestão.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Almoço sem as estrelas



Restaurante,
Parede de espelho,
Aparelho de TV.

De frente pra mim,
De costas pro aparelho,
Penso comigo assim:

Não que eu seja tão bonito,
Mas que tem coisa bem pior,
Ah, eu acredito!

Assimilação de Nelson Cavaquinho



Quando piso em folhas secas,
Ouço o crep crep crep
Da decrepitude.

Na ilusão do lar conforto,
As pantufas no tapete
Soam blef blef blef.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Sem ver



Páginas-cortinas vão virando
Atabalhoadamente em função do vento.

Ninguém está sentado perto da janela
Olhando a janela de outro apartamento.

Ainda assim, a mão da ausência acena alegre
Um gesto nobre de desintegração.

Nenhum olhar não lê-vigia o mundo.
Mas uma voz alcança e abarca a solidão.

sábado, 9 de março de 2013

Terra de gigantes



Um homem que não tinha a perna esquerda
deixou suas muletas de lado,
ergueu a pedra gigantesca
e arremessou contra o vidro do carro.

E outro homem gigantesco, bruto e
distraído, falava ao celular.
Pensaram: "Com a polícia". Mas não era.
Era o Amor que não queria escutar.

O gigantesco estrondo foi sentido
para além nos menestréis em revoada.
Na tela da TV o jornalista e o presidente.
Ninguém sabia de nada.

domingo, 3 de março de 2013

Espírito forte



Eu já quis a inteligência do gênio
Pra ganhar prêmio e cartaz
Eu já quis a habilidade do líder
Que sabe, quer, fala e faz
Eu já quis falar a língua do craque
Com o sotaque do gol
Hoje eu quero ter o espírito forte
E dar suporte ao que sou

Eu já quis a grana preta dos bancos
Sem trancos e sem suor
Eu já quis os prêmios de loteria
E um dia um dia melhor
Eu já quis o lucro fácil e canalha
Que outra gentalha embolsou
Hoje eu quero ter o espírito forte
E dar suporte ao que sou

Eu já quis a silhueta perfeita
A pinta nobre de ator
Eu já quis a voz de Elis e de Ney
Quando teimei ser cantor
Eu já quis ter o talento dos astros
Ou mesmo lastro sem show
Hoje eu quero ter o espírito forte
E dar suporte ao que sou

Eu já quis ter o poder dos tiranos
Para os meus planos de bem
Eu já quis poder ser quisto por visto
E até poder ser ninguém
Eu já quis a reverência dos frágeis
Que a falsa imagem gerou
Hoje eu quero ter o espírito forte
E dar suporte ao que sou

Eu já quis ter a volúpia das feras
Nas priscas eras de horror
Eu já quis tudo o que alguém quer um dia
Mas que jamais conquistou
Eu já quis até querer mais que quero
Mas a vontade tardou
Hoje eu quero ter o espírito forte
E dar suporte ao que sou

Hoje eu sei que sou mais interessante
Em meus rompantes de não
Hoje eu sei que na ambição que faltava
Estava viva a lição
Hoje eu sei que o desafio começa
Onde a promessa murchou
Hoje eu quero ter o espírito forte
E dar suporte ao que sou

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Luva de Pelica


I

As intempéries levam teus bens
E tudo que mantiveste, prendeste, retiveste
Como se o destino dera.

Pessoas espertas levam tuas receitas
E produzem riquezas superiores
Às que forjaste de teus atributos.

Tuas opiniões despencam no outono
Sem completar a maturidade de um ano
Porque sempre há mentes mais argutas.

Tuas conquistas abarrotam o sótão,
Mas nenhuma delas paga as contas do feijão,
Porque quadros na parede não trabalham.

Teu próximo pode ter tantas qualidades
Quanto o próximo de teu próximo,
E as tuas são simplesmente as de outro próximo na conta.

Não te fies na vitória fácil
Porque a vitória sobre ti será tão fácil quanto,
E as forças do fado sempre querem revanche.

É, amigo. Essa é a História.
Essa é a condição de estar e não ter.
Essa é a ferida egótica que a vista recusa.

Há milhões de maneiras de mostrar
Cabalmente à consciência arrogante
O tamanho real do ser que és.

A experiência da humilhação não tarda,
Seja pela mão que apedreja e aponta,
Seja pela transitoriedade da condição humana,

Seja pela dança dos sucessos e fracassos,
Seja pelo descalibrado da balança moral,
Seja mesmo pelo acaso, ou pelo tédio, ou pela impossibilidade de assumir-se um a mais.


II

Tu talvez não saibas, mas a mais didática
E constrangedora operação de humilhação
Não vem da violência das palavras,

Não vem do temperamento autoritário,
Não vem da maledicência pura e simples,
Não vem da competição sem rédeas,

Não vem da sedução, da perspicácia,
Não vem do Mal, da dor, do soco, do azar,
Do ódio, do rancor, da crueldade:

Essa sanção devastadora e dura,
Essa sanção destruidora e inevitável
É aquela que te aplica a nobre alma,

Quando, sabendo do teu infinito de faltas
E de tua inapetência de saná-las,
Ainda oferta um peito aberto de perdão.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Na melodia



Considerando que a Literatura é a música das ideias,
Que a Poesia é a música das palavras,
Que as palavras são a música das letras,
Que as letras são a música do ler.

Considerando que o Cinema é música das cenas,
Que as cenas são música das formas,
Que as formas são música do espaço,
Que o espaço é música no caos.

Considerando que a paixão é a música do impulso,
Que a vontade é a música do instinto,
Que a bem-querença é a música do intuito,
Que o amor é a música do enfim.

Considerando que a natureza tem harmonia,
Que a humanidade tem compasso,
Que os indivíduos têm timbre
Que a civilidade tem tom

Considerando que a música das células é o corpo,
Que a música das buscas é o espírito,
Que a música dos sonhos é a alma,
E a música das músicas é o Todo.

Posso dizer, sem tormentas:
Toda minha vida tem sido
Dançar conforme a música,
Rosto colado no rosto do tempo.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Imo chamado sibilante


Falamos a mesma língua
Quando gaguejamos.

Temos toda razão
Simultaneamente.

Nosso elo é o duelo
Sincero de essências,

Nosso embate de serpentes
Pela toca diminuta.



Estaremos de acordo
Quando desacordados.

Venceremos nossos erros
Quando um de nós não os disser.

Pintados de tinta de batalha
Da seiva volúpia extraída,

Teremos pressa de atualizar
A presa e o predador.



Estalaremos, cada qual,
com o estigma devido.

Cada qual com o gosto alheio
Da pele em qualquer resultado.

E amanhã as cascas das feridas
Serão estilhaços de espelho.

Fomos feitos um para o outro.
E os dois de nós para o mesmo.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Ninharia


Você diz que seu poder é seu dinheiro,
Que é o primeiro a comprar tudo o que quiser,
A ponto de escolher entre o perfeito
E o qualquer.

Você diz que seu consumo não tem freio,
Mas, no fundo, o seu anseio lhe consome
A ponto de que, um dia, tendo tudo,
Você some.

Você diz que eu dou valor a ninharia
E que um dia vou pedir a sua ajuda.
A vida faz da brisa ventania.
Tudo muda.

Você diz que veste e come e bebe e ostenta
O melhor que a vida tem, mas é mentira.
O leite que eu tirei das minhas pedras
Ninguém tira.