segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Suor


Todos os dias,
imagens anunciam
com pompa e estardalhaço
que certas pessoas vencem
sem prece, sem cansaço
e com sorriso na face
falsos desafios
e falsas batalhas;
e todos os dias,
no olhar de outras pessoas,
aparece um brilho baço
por debaixo do disfarce,
exclusivo de quem já perdeu
mais que pedaço
nos fios de muitas navalhas.

Todos os dias
penso nessas conquistas
sem suor das axilas.
Para que fazer parte de listas
quando é medíocre produzi-las?
Por que manchetes de revista
dão tanta repercussão
a pessoas que ignoram
como se ganha o pão na pista?
Tanta contradição:
olhos de pessoas nobres choram
por olhos de quem jamais abriria mão
de seu pouco merecido e muito pão!

Mas todos os dias
consolo-me ao pensar, sentado à mesa,
que faço tudo o que posso
para abastecer a nossa vida da beleza
de um pão nosso.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Epifanias


O dia em que descobri
Minha fome
Passei a fomentar
A fantasia

O dia em que descobri
Do meu peito os sonhos
Passei inteiro
A sonhar


O dia em que descobri
Seu nome
Passei a nomear
O que eu queria.

O dia em que descobri
Do seu peito as senhas
Passei inteiro
Sem ar



sábado, 29 de novembro de 2014

Amizade colorida


Amizade colorida. De que cor?
Cor de faísca chispada
De afago detonador.

Amizade colorida. De que cor?
Infravermelho da face,
Que o face a face entregou.

Amizade colorida. De que cor?
Cor de carvão na fogueira,
Entre as cinzas e o rubor.

Amizade colorida. De que cor?
Cor de burro quando foge

Depois que se apaixonou.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Por quem cativas




Por um momento recusei a sorte
E o sentimento que não compreendi,
Pois não podia ter um ser em si
Tal dimensão, tal posição, tal porte.

Por um momento desejei o corte
Da relação que começava ali,
Por um momento quase decidi
Mostrar-me fraco, inadequado ao forte.

Mas logo veio à consciência-guia
O entendimento de que o meu temor
Era do encargo que eu assumiria

Quando aceitasse a acidental magia
De ter o olhar de encanto a meu dispor
De alguém maior do que eu jamais seria.

domingo, 2 de novembro de 2014

Pichação







No alto do prédio,
Um símbolo de tédio
Que é mais que um desenho:
É o arroubo do roubo do olhar
Que agora tenho.



quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Coruja











Escuro e vazio
é o céu que impera. E a coruja
dispara seu pio.


segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Ensaio


Tenho certeza
De que o momento
Duro e silente
De sentir os olhos
Escurecerem,
De perder os sentidos
Contra a vontade,
De ganhar a inconsciência
Na travessia
Da vigília ao sono
É um ensaio diário
Da morte.

Tenho certeza disso
Porque meus sonhos
São um ensaio diário
Da eternidade da paz
Que vem depois.




sábado, 18 de outubro de 2014

Entradas


Para abrir as portas da multidão,
palavras-chave.
Para abrir as portas da sociedade,
peças-chave.
Para abrir as portas dos gabinetes,
figuras-chave.

Para o que realmente importa
(inferno, purgatório, paraíso,
amor, ódio, indiferença,
profundidade, amplitude, permanência),
toque a campainha
e espere o coração atender.


quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Quatro operações


Um dia
aprendemos a somar,
e entendemos como inevitáveis  -
e aprendemos a aguardar -
mais uma noite de lua suntuosa,
mais um abraço de um sobrinho,
mais uma refeição reconfortante,
mais uma travessia de riacho,
mais um rabisco para não ser lido,
mais um pingo de alegria
memorável ou esquecível,
pouco importa,
desde que devidamente assimilado
no um.

Depois de algum tempo,
com o hábito dos fatos,
aprendemos a subtrair,
a compreender como evitáveis
as por vezes inesperadas
somas que fazem a conta
dar menos que um.
Menos um abraço forjado,
menos uma garatuja de tédio,
menos uma fuga pelos fundos,
menos um gole sem sede,
menos um dia sem espantos,
menos um fio de cabelo
arrancado ou decaído,
pouco importa,
mas quedado por desengate
do ser.

Passam-se os anos, implacáveis,
entre perdas e planos,
e, a despeito de subtrações e somas,
sabemos que ainda há um.
Continuando, entretanto, no outro:
onde habitar um ser humano,
alguma unidade há de erigir-se,
sendo bilhões de unidades,
comendo do mesmo planeta,
às vezes com mesmas ideias,
às vezes no mesmo lugar.
E ao procurar estender-se no outro,
o uno aprende a multiplicar, e a valorizar
as várias versões da ceia coletiva,
os diversos abraços e a troca de energias,
as idas e vindas e os companheiros de viagem,
as ideias que se avolumam sobre um mesmo assunto,
os dias e noites e auroras e arrebóis e demais tempos
na alegria e na tristeza,
pouco importa,
desde que se comuniquem as gentes
e comerciem.

Finalmente,
quando o tempo já consegue nos escutar
e a multiplicidade dos rumos
pede ao corpo limitado uma escolha sã,
aprendemos a sentir nosso "um" no coração alheio:
aprendemos a dividir.
E descobrimos que nossa impermanência,
matematicamente comprovada pelo silêncio das eras,
não tem a dimensão nem o peso de nossa capacidade
de compartilhar com reverência e paixão
o abraço que deveria abarcar o recalcitrante,
o pão que deveria estar em cada mesa,
a arte que deveria trescalar nos poros de cada povo,
os rastros dos que ergueram os templos onde nos protegemos do sol,
o próprio Sol, com todo seu sistema a girar para lunetas curiosas
todas as prendas que a explosão divina distribuiu para os olhos e as mãos
de gente que sabe e que não sabe a que veio e onde vai parar,
pouco importa,
desde que seja gente que se faz mais gente
na caridade,
na compaixão,
no sim.


quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Floreio




Risota dentro da missa,
Floreio dentro da nota,
Delícia dentro da dose,
Poesia dentro da prosa:


Maravilhosa simbiose.


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Prova de amor



Se enviasse minha orelha
em envelope sanguíneo
aos seus atônitos cuidados;
se buscasse você com asas de cera,
e atravessasse os espaços da atmosfera
ignorando a verdade do sol;
se escrevesse milhares de versos
sedentos de uma única leitura,
ou de uma única leitora em potencial;
se prometesse construir um mausoléu
para recobrir joia, gema e pérola
que encantaram a menina dos meus olhos;
se tivesse essa força de tantos homens em um
para mostrar que um pode ser melhor que tantos
quando quer seduzir, impressionar, trazer o foco para si;
definitivamente, não seria eu.
Mas em minhas mãos plebeias haveria
uma legítima prova de amor.

Se bem que de um amor em pedaços:
de medo de não ser amado, que não é bem amor;
de orgulho de uma conquista, que não é bem querer;
de teimosia obsessiva, que não é bem nenhum;
de egoísmo controlador e narcisista, e de tudo isso
que é pedaço de amor quando está no todo
mas vira veneno no coração boçal,

ainda que estimule a verve e o movimento de vida
de poetas e cantores e homens de talento,
ou de ambiciosos vencedores das batalhas dos negócios,
ou de almas que só sobrevivem na incessante projeção de si,
ou de criaturas que somam virtudes
entre glória, poder, talento, persuasão e imponência.

Os simples como eu não provam seu amor.
Eles admiram palavras bem colocadas, presentes bem escolhidos,
promessas bem ajambradas e disposição de calar concorrentes,
porque tudo isso movimenta o mundo.
Mas sabem a quem está sendo dado o testemunho,
e, se são como eu, também sabem
que quem amamos não merece nossa incrustrada solidão.

Não serei, querida, o mocinho de bons modos e impecável limpeza
que abrirá a porta de uma carruagem tensa
a trotar sobre pedras de um planeta a construir.
Não serei a figura galante de príncipe encantado,
com a força dos canhões, dos cartões e das cortesias,
que vai fazer justiça a seus méritos de mulher.

Se bem me conheço, isso sim,
depositarei meu beijo em sua face no ápice do sono,
sairei de madrugada sem acordar as crianças,
comprarei leite e biscoitos na padaria da avenida,
retornarei para deixar as iguarias da manhã,
e rumarei de coração partido para o trabalho honesto
de quem espera voltar mais sofrido, mas sem dúvidas sobre o que é.

Cada um só pode dar daquilo que tem.
Eu só tenho você.

E, até que provem o contrário,
enquanto houver de fato amor,
não preciso provar nada para ninguém.
Nem para mim.


quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Penetra


Sinto-me fora da festa,
e, pior: mirando da fresta,
sinto que lambo com a testa
o que o olho faminto espreita.

A cada concurso que se ajeita,
a cada editora que rejeita,
a cada boa alma que me oferta
uma receita,
sinto-me menos poeta.

Não fiz pacto com capeta,
nem de Deus sou criatura dileta.
A tinta de que minha lira é feita
não é de sustância abjeta.
Meu verso tem um legítimo não-sei-quê,
mas crítica não me orienta,
só me espeta.
Quem não conhece, não lê;
quem me lê, não me interpreta;
quem interpreta, não conta mais:
poesia sem aval de gente abalizada
é motivo de risada;
tanto faz.
Diante de quem tem cartaz
no ecossistema da arte,
sou inseto que projeta
as próprias larvas,
abelha-operária fazendo sua parte:
um dia mando tudo às favas.

Sinto-me penetra,
absurdamente penetra,
no reino das palavras.

sábado, 23 de agosto de 2014

Pero Vaz


Pero Vaz,
infeliz português.
Longe jaz,
e o que ele fez
caminha.

Nos além-mares da Ásia,
seus últimos ais
desconheciam fado extenso.
Do tempo de seu vulto,
três nações
rezam um terço:

A Índia, paradeiro;
Portugal, endereço;
o Brasil, tempero.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Coroação


Formas de vida
Coram solos hibernais:
Botões de rosa.


quarta-feira, 30 de julho de 2014

Franco



Não posso trocar de intenções
Como quem troca de camisa.
O que meu olhar disse, dito está.
O que deixei escrito mantém a tinta.

Não é porque me defendo no recalque
Que abandonaria uma certeza construída.
Talvez você não saiba, mas eu sei
Que nem tudo que cala, imobiliza.

A esperança é um brinquedo triste,
Mas quando você aceita a brincadeira
Sento de um dos lados da gangorra
Esperando o impulso que me joga aos céus.

A aspiração carrega sempre um amargor,
Mas tudo o que você promete
Quando aparece em minha mente,
Parece brigadeiro de colher.

E em vez de resmungar investidas alheias,
Em vez de rechear de atenção outro objeto,
Deito na grama no meio da praça
Porque não posso escolher por você.

Mas nenhum gato venderei por lebre,
Meu lobo não vestirá pele de ovelha.
O que meu olhar disse, dito está,
Até as consequências derradeiras.






domingo, 22 de junho de 2014

No ar


É óbvio
que o vento
vai e vem.

É óbvio,
mas ninguém
vê.

É óbvio,
mas é lento
de entender.

É um óbvio
que é "além
de".


sexta-feira, 20 de junho de 2014

Selfie vintage


Ao fitar a foto antiga, no sofá, bebê,
Tão difícil é destecer a vida que me resta!
Porque ela sempre esteve inteira nesse rostinho de festa,
Nesse riso boca aberta, sem vergonha de viver.

Ao fitar essa verdade de brilho castanho,
Do tamanho do universo (que era berço e fralda),
Entendo que corri atrás da minha própria cauda
E que tive mais vitórias do que ganhos.

Ao fitar meu futuro nessa alegria infante,
Terna, travessa e ignorante de si,
Entendo o porquê de tudo que vivi,
E entendo o que me espera adiante:

Quando eu crescer e atingir o ponto mais maduro,
Quero ninar e proteger meu eu-bebê do escuro.




quinta-feira, 19 de junho de 2014

Pega-pega


Com riso disfarçado e cabecinha pensa
Você me ofereceu para escolher, de dois,
Apenas um: abraço ou beijo, e só depois
Ganhar de presente o de sua preferência.

Não sei por que aceitei, não tinha diferença.
Tão logo eu fiz a escolha, a sua se interpôs.
Talvez não fosse bom eu ser "feijão com arroz",
Talvez brincar de amor causasse impaciência.

Você correu de mim pelo quintal gigante
Porque escolhi um beijo em meu olhar entregue,
Porque tremi meus lábios como iniciante,
No máximo pudor que um puro amor consegue.

Não alcancei você porque faltaram pernas.
Só me sobrou o abraço de ilusões eternas.


domingo, 4 de maio de 2014

A vida vence


O espírito de um homem sobrevive
Ao corpo, à morte, à desintegração.
Eu deixo um pouco deste coração
Em cada tempo e chão no qual estive.

Eu deixo os bens que amei (e nunca tive
Um bem maior em retribuição),
E deixo a história minha de lição
Com todos os meus erros, inclusive.

Não é preciso ser um detetive
Pra ver que, na extensão desta existência,
Nossa existência muda de extensão.

Não é preciso armar-se de tal crença,
Pra ver que a vida vence, e, queira ou não,
O espírito de um homem sobrevive.


terça-feira, 29 de abril de 2014

Abstração


Radiofrequências ativas
Fazem estragos de luz e cor
No tubo do televisor.

As traças atravessam a estante
Usando ativamente meus livros
(saciedade dos insetos vivos).

Nos armários e gavetas da cozinha
Um brilho metálico de inércia impecável
Caminha.

Bits e bytes esbatem-se na tela,
Como flores colorindo a primavera.
No monitor, a rede é teia,
Onde a mosca do mouse passeia,
Sem cuidado e sem aviso.

Enquanto isso,
Sentado no sofá,

Eu briso.

domingo, 20 de abril de 2014

No colo


Quente no berço dos braços
Que é o melhor leito da vida,
Dorme, bebê, no compasso
Desta canção distendida.

Dorme esperando um sibilo
Suavemente presente,
Como um riacho tranquilo
Numa savana sem gente.

Dorme esperando um zunido
Suavemente esquisito,
Como um cochicho emitido
Pelo ir e vir de um mosquito.

Dorme esperando uma nota
Suavemente entoada,
Como pisada de bota
De quem vem da madrugada.

Dorme esperando mais nada,
Suavemente risonho.
Dorme da minha balada,
Que eu dormirei do teu sonho.

Dorme, bebê, sem cautela,
Dorme do meu acalanto,
Como uma ingênua donzela
Sob o condão de um encanto.

Dorme que a noite é chegada,
Dorme que o sonho é partida,
Dorme da minha balada,
Quente nos braços da vida.


sexta-feira, 18 de abril de 2014

Pássaros (na janela)


Retinem da garganta alada trinos
Que pálpebras descerram, minhas, lentos.
Os sonhos dão lugar a pensamentos
Ainda vagos, quase desatinos.

Os sons continuados, paulatinos,
Remetem-me a remotos sentimentos,
E acoplam-se com ruflos violentos
Que cada vez mais fortes discrimino.

Decifro as sombras lépidas e estrépitas
Que aplaudem a abertura de outro dia
Cruzando a luz que adentra este aposento:

A natureza, em valsas sempre inéditas,
Desperta-me de um sonho sem poesia,
Enquanto noutro adentro, desatento.


sábado, 22 de março de 2014

Acalanto


Deita na cama e derrama,
Do que aprontaste, teu pranto.
Cantas teu tétrico drama;
Ouço meu doce acalanto.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Perigo nas entranhas

A Lua ainda inspira o lobo
Fossilizado na espinha do cão,
Como o vento refresca a crina
Do homem no alto do edifício.

Ondulações de barbantes excitam
Linces guardados nas unhas dos gatos.
Pterossauros nos esqueletos dos pombos
Arrogam-se ainda a posse dos céus.

O espírito da onça em caça
Pesa no acelerador, e embala.
A sede dos símios mergulha os pés
Nas águas do lago do parque.

Cuidado, cidadão humano!

Não deixe a vida de verdade
Contaminar o ecossistema da selva de pedra.


Não alimente os animais!